O globo, n.31898, 06/12/2020. Rio, p. 23

 

Nova pista surge no Caso Marielle e Anderson

Vera Araújo 

Chico Otavio

06/12/2020

 

 

Com os assassinatos da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes prestes a completar mil dias, na terça-feira, novas pistas surgem na montagem do intrincado quebra-cabeças em que se transformou o caso. Uma das novas peças pode levar ao responsável pela clonagem do Cobalt usado na emboscada às vítimas. Os investigadores descobriram que Eduardo Almeida Nunes de Siqueira, morador da Muzema, favela dominada pela milícia, clonou um veículo do mesmo modelo, entre janeiro e fevereiro de 2018, portanto, próximo a março, quando o crime foi cometido. Coincidência ou não, o advogado Bruno Castro, que defende Siqueira, é o mesmo que atua para o sargento reformado da Polícia Militar Ronnie Lessa, acusado de executar Marielle e Anderson.

‘Absoluta coincidência’

Siqueira admitiu que já clonou vários veículos, inclusive um Cobalt, prata, ano 2014, semelhante ao carro usado pelos assassinos, em depoimento prestado à Delegacia de Homicídios (DH) da Capital, em 3 de julho de 2018. Entretanto, o assunto ficou esquecido nas milhares de páginas do processo. Ao revisitar as folhas iniciais do caso, o Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do Rio teve sua atenção voltada para as informações prestadas pelo acusado e o fato de ele e Lessa terem o mesmo defensor.

Siqueira contou, à época, que foi preso na porta de casa, na Rua Engenheiro Souza Filho, principal via da Muzema, com um Polo cinza que teria adquirido de ladrões de carro no Morro do Borel, na Tijuca, por R$ 1 mil. Ele adulterou o chassi, mandou fazer placas novas e falsificou a numeração dos vidros. Os dados e as características do carro a ser clonado foram pesquisados na internet. Ele responde à Justiça por isso.

O Cobalt teria sido trocado por um Fiat Palio, numa negociação com um miliciano conhecido como Pepa, da área de Curicica. Ao ser perguntado pelos investigadores, em 2018, se o carro foi usado na morte de Marielle e Anderson, Siqueira respondeu “não saber informar”. Contudo, ao ver as imagens pela TV do Cobalt usado no crime, Siqueira disse que “viu grande semelhança com o veículo que esteve em suas mãos” e que, posteriormente, passou para uma pessoa de nome Rafael. Disse, no entanto, que não lembrava das placas do Cobalt que clonou. Siqueira está preso desde julho de 2018.

Procurado, Bruno Castro confirmou que defende Siqueira no caso.

— Sou advogado dele por absoluta coincidência da vida. Um amigo me indicou. Já imaginava que fariam essa ligação. Siqueira está sendo investigado porque não quis assumir a posição de clonador do Cobalt do Caso Marielle, como a polícia queria. Este depoimento foi forjado — afirmou, embora o depoimento tenha sido assinado por seu cliente.

Ex-vereador é suspeito

Além da nova pista, a polícia segue outras linhas de investigação. Uma delas é que a ordem para matar Marielle partiu do ex-bombeiro, ex-vereador e miliciano Cristiano Girão. O objetivo seria se vingar do deputado federal Marcelo Freixo (PSOL). Girão era um dos nomes da lista da CPI das Milícias, em 2008, presidida pelo parlamentar na Assembleia Legislativa. Marielle trabalhou durante anos com Freixo. O ex-vereador ficou preso até 2017, um ano antes do crime. Ele nega participação e, como álibi, disse à polícia que, no dia do assassinato, foi a uma churrascaria, na Barra, onde ficou até meia-noite.

O Gaeco também aguarda o julgamento de três recursos no Supremo Tribunal de Justiça (STF). O Google recorreu da decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que determinou o fornecimento de informações envolvendo o crime às autoridades fluminenses. Um dos pedidos diz respeito à entrega da lista de pessoas que pesquisaram na ferramenta de buscas o nome “Marielle Franco”, entre 10 e 14 de março de 2018. O MPRJ também quer que a empresa informe o trajeto do carro usado pelos assassinos em diferentes dias.

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Entrevista - Simone Sibílio e Letícia Emile 

06/12/2020

 

 

À frente da investigação considerada a mais complexa dos últimos anos, a execução da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes, Simone Sibílio e Letícia Emile, promotoras do Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do Rio, são categóricas: afirmam que esgotarão todos os meios para chegar ao mandante do crime. No entanto, em janeiro, conforme a tradição no MPRJ, com a mudança do procurador-geral de Justiça, elas podem ser remanejadas.

Qual é o balanço destes quase mil dias de investigação?

Sibílio: Depois que o Gaeco entrou no caso, em setembro de 2018, a primeira providência foi direcionar todas as estruturas do MP para fazer um efetivo controle externo da atividade policial. Todas diligências eram acompanhadas por nós. Participamos diretamente das provas técnicas, partindo das análises dos telefones. A interação entre o MP, a delegacia, a Polícia Federal e o Ministério da Justiça ajudou muito.

Qual foi o nível de complexidade do caso?

Sibílio: Chegar aos autores, o sargento reformado Ronnie Lessa e o ex-PM Élcio de Queiroz, não foi fácil. Eram ex-agentes públicos e, como tais, eles sabem se proteger de uma investigação. Tivemos que abrir mão de estratégias legais e convencionais. Foi uma investigação de trás para a frente.

O caso Marielle abriu uma nova forma de investigar?

Emile: Hoje em dia, o criminoso não fala mais ao telefone. Um profissional que trabalha na área criminal não pode ser ingênuo de achar que fará uma receptação telefônica e irá pegar os autores de um crime. A gente já tinha certeza de que essa prova não iria surgir. As dificuldades se ampliaram porque contou com a contrainformação. Eu acredito que seja a primeira investigação com, pelo menos, três obstruções comprovadas. Foi com o Caso Marielle que conseguimos chegar aos milicianos de Rio das Pedras, como o ex-capitão Adriano da Nóbrega Magalhães, e ao Escritório do Crime (grupo de matadores de aluguel). O caso escancarou este submundo que estava aí e nada era feito.

O caso está em seu terceiro delegado. Isso dificulta as investigações?

Sibílio: A investigação tem que seguir. Continuamos firmes, nos reunindo com a Delegacia de Homicídios da Capital traçando estratégias. São muitos dispositivos eletrônicos que ainda estão sendo analisados. Só recentemente, conseguimos quebrar a senha de um celular de Ronnie Lessa.

Qual seria a motivação?

Emile: Seria por uma vingança por tudo aquilo que Marielle representava. Todas as pesquisas de Lessa eram relacionadas a pessoas de partidos políticos contrários às convicções deles. Foi em represália às bandeiras que ela defendia: as causas LGBTQIA+ e antirracista.

E quem são os mandantes?

Emile: Estamos trabalhando incessantemente na busca de outros envolvidos. O MP continua pedindo várias medidas judiciais para elucidar o caso. Se houve mais pessoas, elas serão encontradas. Por isso, estamos ainda pleiteando informações ao Google e ao Facebook. Uma única pista puxa o fio da meada.

O que dizer às famílias?

Sibílio: Mantemos a família informada, com o que podemos compartilhar. A vida deles está em função do crime. Eles têm que viver com a presença da ausência. Preencher este vazio com respostas é a nossa responsabilidade.