O Estado de São Paulo, n.46339, 31/08/2020. Notas e Informações, p.A3

 

Perigoso precedente

31/08/2020

 

 

Por ampla maioria (8 votos a 1), os ministros da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiram que o Google deverá entregar dados indiscriminados de seus usuários às autoridades fluminenses encarregadas de apurar o assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes. Foi uma decisão lastimável. O que o STJ fez foi compensar a incompetência da Polícia Civil e do Ministério Público do Rio de Janeiro para chegar aos mandantes do crime, passados dois anos e meio de investigações, com a flexibilização de direitos e garantias individuais protegidos pela Constituição.

É de alta relevância para o País o esclarecimento de um crime brutal que, a um só tempo, atentou contra a vida de duas pessoas e feriu a democracia representativa. Dois suspeitos de terem executado o crime já foram identificados e presos. Resta identificar, processar e julgar o(s) mandante(s). Só o deslinde do caso trará algum conforto aos familiares e amigos das vítimas e tranquilizará a Nação. Mas a premência por respostas não pode servir de justificativa para o atropelo da boa técnica investigativa e, principalmente, de valores democráticos resguardados pela Lei Maior. Em outras palavras: o bom término de uma investigação criminal não basta por si só. Os meios em que ela se dá têm importância fundamental em um país que se pretende sério.

Em fevereiro de 2019, quase um ano após os assassinatos, a 4.ª Vara Criminal da Comarca do Rio de Janeiro determinou que o Google fornecesse às autoridades informações sobre quem teria transitado por certos locais da capital fluminense. Pela decisão, a empresa foi obrigada a informar a exata localização de acessos e o conteúdo de buscas feitas em sua ferramenta a partir de telefones celulares naquele determinado perímetro. Quaisquer telefones, não os que seriam de suspeitos do crime. O Google recorreu da decisão sob a correta alegação de que a ordem dada pela Justiça do

Rio era demasiado ampla e genérica, o que fere preceitos constitucionais e dispositivos do Marco Civil da Internet. O caso chegou ao STJ, que manteve o entendimento da Justiça fluminense. Com novo recurso anunciado pelo Google, poderá chegar ao Supremo Tribunal Federal (STF). E se assim for, é vital que a Corte Suprema cumpra seu papel de garantidora da ordem constitucional e restabeleça o direito à privacidade daqueles que nada têm a ver com o crime.

Custa crer que, com tantos recursos empenhados em uma investigação de repercussão mundial, as autoridades responsáveis pela elucidação do assassinato de Marielle Franco e de Anderson Gomes dependam tão fundamentalmente da consulta aos registros de um buscador na internet. Parece bastante claro que o crime não foi cometido por gente tão amadora.

Segundo o ministro Rogério Schietti, relator do caso no STJ, "em uma sociedade na qual a informação é compartilhada cada vez com maior velocidade, nada mais natural do que a preocupação dos indivíduos em assegurar que os fatos inerentes à sua vida pessoal sejam protegidos, mas é preciso ter em mente que o direito ao sigilo não é absoluto, admitindo-se a sua restrição quando imprescindível para o interesse público". É evidente que sim, mas a restrição de que se trata aqui deve recair sobre os direitos dos suspeitos, não de quaisquer outros cidadãos. Apenas o ministro Sebastião Reis zelou pelas garantias individuais. "Não há delimitação de público-alvo, não há sequer área determinada." Quem quer que tenha buscado o nome da vereadora Marielle Franco em certas datas pode ser alvo de investigação. Isso é um absurdo.

A Polícia Civil e o Ministério Público do Rio não fazem ideia de quem possa ter mandado matar a vereadora? Só isso pode explicar o recurso a essa espécie de "pescaria" indiscriminada, uma flexibilização de direitos que, a pretexto de elucidar um grave crime, abre um perigoso precedente.

As autoridades fluminenses devem respostas ao País. E a Justiça deve garantir que elas sejam dadas de acordo com as leis e a Constituição.