Valor econômico, v. 21, n. 5168, 15/01/2021. Brasil, p. A6

 

Saída da Ford impacta vários setores

Lucienne Carneiro

Gabriel Vasconcelos

15/01/2021

 

 

Estudo da UFMG diz que não há cenário neutro para fim das atividades da montadora no Brasil
O fim da produção da Ford no Brasil pode representar perda de até 0,06% no Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro de 2021 - o que representa R$ 3,8 bilhões - e de 0,28% no resultado acumulado ao longo de 20 anos até 2040 (R$ 16 bilhões). Os cálculos são de pesquisadores do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional, da Universidade Federal de Minas Gerais (Cedeplar/UFMG).

As estimativas não consideram eventual substituição da produção da Ford por concorrentes nem a incorporação de suas fábricas por outras empresas. Mas, mesmo que isso ocorra, as perdas para a economia ainda seriam significativas e não há cenário de impacto neutro, dizem os pesquisadores. O estudo aponta destruição de mais de 50 mil vagas formais de trabalho diretas e indiretas só neste ano devido à decisão da Ford, considerando toda a cadeia produtiva. As perdas de postos de trabalho se acentuariam até 2025 (com mais de 70 mil), mas aos poucos vão sendo reduzidas, até pouco mais de 11 mil em 2040.

É este um dos aspectos que tornam mais grave a decisão da Ford, segundo especialistas: o efeito cascata em outros ramos da cadeia de suprimentos de uma montadora de peso, sobretudo siderurgia, plástico, borracha e química. Há quem acredite, no entanto, na tendência de substituição dessa produção por concorrentes em um cenário de alta capacidade ociosa do setor no Brasil, em torno de 40%.
O estudo é feito a partir de um modelo de simulação que contempla a relação entre os setores da economia (matriz de insumo-produto do IBGE) e usa outros indicadores como a Relação Anual de Informações Sociais (Rais). É considerado um crescimento médio anual do PIB de 2,2% nos próximos 20 anos. “A saída da Ford fatalmente vai encolher a produção do setor em 2021 e no médio prazo, com impacto na cadeia produtiva e no emprego. É um setor que tem muitos encadeamentos industriais. O modelo também capta queda de geração de renda desses trabalhadores, que afeta outros setores como serviços e agricultura”, diz um dos autores, o professor de economia da UFMG Edson Domingues.

A preocupação com o impacto em outros setores é compartilhada pelo pesquisador em Desenvolvimento Industrial (SARChI-ID) da Universidade de Joanesburgo Paulo César Morceiro. Ele aponta que a indústria automobilística é um dos maiores multiplicadores da economia e gera mais que o dobro de produção que a média da economia. “O setor automobilístico arrasta uma malha de fornecedores, especialmente nos setores de autopeças, metalurgia, plástico, borracha e material elétrico e eletrônico, mas também setores de pós-produção, como seguros e postos de combustíveis”, afirma.

Mesmo que marcas concorrentes absorvam a produção da Ford, devido à capacidade ociosa no setor, alerta Domingues, este processo se dará com um “esforço muito menor de investimento em maquinário, pagamento de salários e compra de insumos”. Segundo o especialista, mesmo no melhor dos cenários, em que novas empresas assumam as plantas abandonadas, a operação seria enxugada, com produção modesta em um primeiro momento e menor número de empregados.

Um agravante no mercado de trabalho é a qualificação dessa mão de obra, segundo Silvio Sales, ex-coordenador da Pesquisa Industrial Mensal do IBGE: “Não há dúvida de que o principal impacto imediato é no mercado de trabalho, principalmente considerando que é uma mão de obra mais qualificada, com salários acima da média da economia”.
Em cenário em que metade da produção da Ford seja assumida por concorrentes, Domingues afirma que é possível falar que os impactos sobre o PIB e emprego seriam também próximos à metade, em função do modelo usado no estudo. Significa que a perda ficaria em 0,03% do PIB (R$ 2 bilhões).

Especialistas veem mais impacto imediato no mercado de trabalho que no nível de produção da indústria. Pesquisador do Instituto de Pesquisa Economica e Aplicada (Ipea), Leonardo Carvalho acredita na conquista do espaço de mercado da Ford pelas concorrentes. “Em termos de produção, a saída da Ford não inspira preocupação porque estamos falando de um mercado com alto grau de substituição. Isso já vinha ocorrendo com a própria Ford, que, nos últimos anos, foi ultrapassada por asiáticas que vêm ganhando espaço”, diz Carvalho.

Mais do que o impacto do fim da produção de uma montadora, no entanto, o que está em debate é o próprio futuro da indústria automobilística no país, reforçam pesquisadores e economistas. Em todo o mundo, o setor passa por uma transformação profunda com o avanço do carro elétrico, os debates sobre a mobilidade urbana e a menor demanda por veículos pelas gerações mais novas. No Brasil, enfrenta problemas comuns a toda a indústria, como falta de infraestrutura, desorganização tributária e flutuação forte do câmbio, mas também dificuldades de competitividade que vêm do modelo adotado desde o início da produção automotiva nacional.

Economista-chefe do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), Rafael Cagnin vê com preocupação a situação da indústria automobilística, que enfrenta “um turbilhão de transformações em todo o mundo”. “Existem desincentivos sistemáticos ao investimento produtivo no Brasil devido às deficiências estruturais.”