Valor econômico, v. 21, n. 5168, 15/01/2021. Opinião, p. A14

 

Os sinais ruins que deixa a saída da Ford do Brasil

15/01/2021

 

 

A reestruturação da produção automobilística global e as dificuldades em lidar com ela têm um papel central na decisão da Ford
A decisão da Ford de encerrar a produção de veículos no Brasil despertou forte reação no país. As manifestações foram das mais sentimentais às mais ríspidas. Não faltaram nas redes sociais o desfile de fotos de modelos icônicos de automóveis, que marcaram os pouco mais de cem anos da marca no país, e a lembrança da Fordlândia, que a empresa projetou em plena Amazônia.

O vice-presidente Hamilton Mourão afirmou que a montadora ganhou bastante dinheiro no país e deveria ter ficado um pouco mais. O presidente Jair Bolsonaro, bem ao seu estilo, elevou o tom e disse que faltou à empresa falar a verdade: teria saído porque não conseguiu mais subsídio. A Ford justificou a decisão pela necessidade de cortar custos. Indústrias se queixam da elevada carga tributária brasileira e analistas falam dos desafios que o setor automobilístico enfrenta em um mundo que demanda cada vez mais máquinas eficientes e de energia limpa. A realidade tem um pouco de cada um desses elementos.

Primeira montadora a se instalar no Brasil, em 1919, a Ford já vinha dando sinais de mudança de planos no país. Há algum tempo não eram anunciados investimentos importantes, especialmente em cenário de mudança de paradigma, como a transição para o automóvel elétrico. A Ford teve bons resultados no início deste século, se recuperando da queda da produção na década de 1990. Em 2010, chegou a fabricar 353 mil veículos. Mas voltou a perder espaço no mercado, afetada pela recessão do segundo mandato do governo de Dilma Rousseff.

Cinco anos depois, a produção havia encolhido em quase um terço, patamar em que estacionou, enquanto os concorrentes ganhavam terreno, quando a economia permitia. Diminuiu ainda mais em 2019 quando anunciou o fechamento da fábrica de caminhões e do Fiesta, em São Bernardo do Campo (SP). No ano passado, fabricou 227,2 mil veículos. Ainda assim, e apesar da pandemia, ficou na quinta posição no mercado, com a significativa participação de 7,14%, à frente de outras grandes, como a Renault e a Toyota. Agora, vai encerrar ao longo do ano a produção de veículos em Camaçari (BA) e Horizonte (CE), além da fabricação de motores em Taubaté (SP).
No total, estima-se a perda de 5 mil empregos diretos. A conta não envolve os numerosos empregos indiretos em uma cadeia de produção longa, que inclui produtos químicos, borracha, metais e componentes eletrônicos.

Bolsonaro reagiu negativamente ao anúncio da Ford. Segundo ele, o verdadeiro motivo da saída da empresa do Brasil foi que o governo não aceitou dar mais subsídios. O presidente informou que a montadora recebeu R$ 20 bilhões em incentivos públicos. Os números podem não ser exatamente esses, mas as montadoras vêm recebendo, de fato, muito estímulo ao longo do tempo. Só neste ano o gasto tributário previsto com o setor automotivo é de R$ 5,9 bilhões. Dados da Receita Federal mostram que, em dez anos, incluindo este ano, o gasto tributário com o setor chegou a R$ 48,5 bilhões, em valores correntes, ou R$ 56,1 bilhões, a preços de dezembro de 2020 (Valor 14/1). Os valores se referem apenas aos subsídios federais. Há ainda incentivos regionais, além de não raros estímulos municipais.

Outras montadoras encerraram algumas linhas nos últimos dois anos. A Audi suspendeu a produção no Paraná; e a Mercedes-Benz a de automóveis de luxo. A fusão da Fiat com a Peugeot, que avançou neste início de ano, também deverá ter desdobramentos no país.

A reestruturação da produção automobilística global e as dificuldades da Ford em lidar com ela têm um papel central em sua decisão. A indefinição da, ou falta de, política brasileira para o setor - embarcar no carro elétrico, ou em um híbrido com fonte limpa, como o álcool - joga também um papel importante. O país está ficando fora do mapa das transformações produtivas que marcarão o futuro desse mercado. A proteção às montadoras e os subsídios claramente deixaram de produzir resultados relevantes - o modelo se esgotou.

As escolhas empresariais erradas da Ford produzirão um encolhimento geral da marca no mundo, o que já vinha ocorrendo no Brasil. Anos de recessão, seguidos de crescimento medíocre e, depois, por uma brutal pandemia foram uma soma de golpes difíceis de aparar. Seu problema é o mesmo das que ficam - modernização tecnológica e competitividade. É uma equação que se não for bem resolvida arruinará outras empresas do setor.