Título: Bolívia e Evo são a vitrine da latinidade
Autor: Almeida, Rodrigo de
Fonte: Jornal do Brasil, 27/09/2008, Internacional, p. A21

Para intelectuais, composição social e políticas do país formam "experimento democrático"

MÉRIDA

A Bolívia, e não a Venezuela. Evo Morales, e não Hugo Chávez. São estes as grandes vitrines, uma espécie de pintura da latinidade do presente sobre a qual intelectuais reunidos em conferência no México se debruçam em estudos e admiração. Os nomes de Morales e da Bolívia estiveram presentes em todos os debates da 18ª Conferência da Academia da Latinidade, realizada esta semana em Mérida, mas uma seção, em especial, exibiu a face dessa importância. À mesa, não à toa, dois bolivianos, um venezuelano e um mexicano.

¿ Algo raro e estranho está se passando na América ¿ resumiu, com certo espanto e orgulho, o sociólogo César Rojas Ríos, da fundação UNIR-Bolívia, para ironizar em seguida: ¿ A Bolívia é a surpresa do momento. Virou notícia. É um dos exemplos de um continente que parece perdido, com um índio, um sindicalista e possivelmente um negro como presidentes (referindo-se ao seu país, ao Brasil e ao candidato democrata Barack Obama).

Ríos foi um dos intelectuais a tentar explicar o porquê de tanta badalação. Para muitos dos acadêmicos presentes, a Bolívia configura uma experimento democrático, repleto de conflitos e desafios, mas de consideráveis esperanças. E lembrou: a Bolívia é o país mais desigual do continente da desigualdade; a renda per capita não chega a US$ 900, quando a média latino-americana é de US$ 3.800; 60% são pobres.

¿ Temos uma sociedade extrema, com um sistema político extremista, que dificulta a concretização de pactos ¿ disse Ríos.

O sociólogo boliviano recompôs três tempos distintos da história do seu país. O primeiro, que chamou de "consciência desperta", resultou na revolução de 1952, quando a ação de movimentos populares resultou na nacionalização do estanho, na reforma agrária e na substituição do Exército por milícias. O segundo momento foi o que Ríos classifica como o "fracasso neoliberal em construir o Estado moderno boliviano". De 1985 a 2005, segundo o sociólogo, restou o "colapso das esperanças". Que deu no terceiro momento: o do conflito entre os movimentos sociais indígenas e os neoliberais instalados no poder. A correlação de forças mudou e se chegou a Evo Morales.

¿ Essa terceira etapa requer a construção de grandes fórmulas políticas para a construção de pactos funcionais ¿ afirmou Ríos. ¿ As três temporalidades estão buscando consenso. Há vozes autonômicas. Uma descentralizadora e democrática. Outra autoritária, oligárquica e conservadora. Precisamos de uma democracia ampliada, que aceite a polifonia de vozes.

Antes de Ríos, o também boliviano Javier Sanjinés C, professor da Universidade de Michigan, nos EUA, já havia apontado o dedo para as relações tortuosas entre indígenas, mestiços e brancos. Sanjinés analisou a idéia de duas nações: uma cívica, outra étnica. Ambas capazes de conviver mutuamente e trafegar num terreno ancorado na idéia de um "sentido comum" ¿ que supere as polarizações.

ONU

Com pesquisas focadas na articulação de culturas dos Andes, o professor recorreu ao Informe nacional sobre desenvolvimento humano 2007: o estado do Estado da Bolívia, apresentado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Humano, da ONU. O informe rechaça o Estado "monocultural" e "centralista", que divide as classes altas das populares, e os mestiços dos povos indígenas. "Não existe uma nação única, homogênea e avassaladora na Bolívia", resume o texto. "Emerge uma nação plural, homogênea e em contínuo processo de construção". Reconhece a existência de muitas culturas e uma relação eqüitativa entre elas.

¿ Sem reduzir a importância da Revolução de 52, o restituir a força do conflito étnico nas análises da interculturalidade, modificam-se as coordenadas históricas e se retorna à problemática construção da nação no início do século 20 ¿ sublinhou Sanjinés. ¿ A concepção de nação cívica não impediu que, na Bolívia do início do século, tenha se dado uma nação fundada no gênio étnico-genealógico.

O resultado, diz, foram as fissuras e fragmentações discriminatórias. Quando, ao contrário, a heterogeneidade pode servir de instrumento de convivência e autonomia.

¿ A nação cívica se concentra no indivíduo e na individualidade, o ponto de partida das sociedades globalizadas que requerem, para sobreviver, competitividade, modernização e sujeição à lógica do mercado ¿ atacou.

O mexicano Jorge Esma Bazán, diretor do Patronato de Cultura do Estado de Yucatã, onde fica Mérida, lembrou:

¿ O ideal democrático não pode prescindir do respeito à diferença.

Diz um dos conceitos básicos do nacionalismo que a humanidade está dividida naturalmente em nações e que estas têm peculiaridades locais que as diferenciam entre si. E mais: que a única forma de governo legítimo é aquela que se autodetermina nacionalmente. Já o componente étnico, ressaltou Javier Sanjínes, é mais embaixo. Tem maior complexidade porque exibe um caráter muito mais subjetivo.

Polêmica

Tese polêmica, reação inevitável. Da platéia, o historiador equatoriano Enrique Ayala, reitor da Universidade Andina Simon Bolívar, comentou que "nação étnica não existe":

¿ Existem, sim, nações étnicas, no plural, frente a um Estado. Há uma nação única, que é a cívica. Não se trata de defender o Estado boliviano como nação mestiça.

Estrela do dia, muitos debatedores discutiram se a Bolívia é hoje um modelo de políticas, inovações e conflitos.

¿ Se é modelo eu não sei, mas a Bolívia permite hoje repensar toda a política e o Estado contemporâneos. Da América Latina à Europa ¿ resumiu, o argentino Walter D. Mignolo, professor da Universidade de Duke, nos EUA.