Correio braziliense, n. 21017, 09/12/2020. Brasil, p. 7

 

Guerra da vacina preocupa estados

Edis Henrique Peres

Natália Bosco 

09/12/2020

 

 

O cabo de guerra que se formou entre o governador de São Paulo, João Doria, e o governo federal sobre a vacinação contra a covid-19 provocou uma reação em cadeia com outros chefes de executivos estaduais. A reunião ocorrida ontem entre os governadores e o ministro da Saúde explicitou as divergências entre o Palácio dos Bandeirantes e o ministério da Saúde, além de mostrar os desafios que se impõem ao país no processo de imunização contra o novo coronavírus.

Durante a reunião, realizada de forma presencial e on-line no Palácio do Planalto, o ministro da saúde, Eduardo Pazuello, disse que a certificação de qualquer vacina contra a covid-19 pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) só deve ocorrer em fevereiro de 2021. A previsão do ministro contraria os planos do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que pretende iniciar a vacinação da população paulista em 25 de janeiro, data de aniversário da cidade de São Paulo. Segundo Pazuello, a Anvisa precisa de ao menos 60 dias para realizar a certificação de qualquer vacina. O ministro citou como exemplo a vacina do laboratório AstraZeneca, que está concluindo a fase 3 dos testes. O governo brasileiro tem um acordo de transferência de tecnologia com o laboratório por meio da Fiocruz.

Joao Doria reagiu à fala de Pazuello. O governador questionou Pazuello sobre a falta de interesse do governo federal em relação à CoronaVac, vacina desenvolvida pelo laboratório chinês SinoVac em parceria com o Instituto Butantan. "Por que excluir a CoronaVac, já que o procedimento junto à Anvisa é igual ao Covax e AstraZeneca?" O governador de São Paulo também questionou o ministro se é uma "questão ideológica, política ou falta de interesse".

Doria também mencionou o episódio da compra da CoronaVac pelo governo federal, suspensa pelo presidente da República, Jair Bolsonaro recentemente. Em 20 de outubro, Eduardo Pazuello anunciou a intenção de adquirir 46 milhões de doses do imunizante do SinoVac. No entanto, no dia seguinte, o presidente Bolsonaro publicou por sua conta no Twitter que não compraria a vacina chinesa.
Ontem, o episódio foi retomado por Doria. "O senhor (Pazuello), na última reunião com 24 governadores, anunciou que compraria 46 milhões (de doses). Infelizmente o presidente o desautorizou. Foi deselegante com o senhor em menos de 24 horas e impediu que sua palavra fosse mantida perante os governadores", relembrou. Doria finalizou: "O seu ministério vai comprar a vacina CoronaVac sendo aprovada pela Anvisa? Sim ou não, ministro?"

Em resposta, Pazuello afirmou que a vacina é do Butantan, e não do estado de São Paulo. "Não sei por que o senhor fala tanto como se fosse do estado; ela é do Butantan. O Butantan é o maior fabricante de vacina do nosso país e é respeitado por isso. O Butantan, quando concluir seu trabalho e estiver com a vacina registrada, avaliaremos a demanda. Se houver demanda e houver preço, nós vamos comprar", finalizou.

Durante a reunião, o ministro reafirmou que o governo priorizará qualquer vacina devidamente registrada no país e que atenda às necessidades nacionais.

Horas depois da reunião com os governadores, o ministro Pazuello fez um pronunciamento no Palácio do Planalto. Ele repetiu o compromisso do governo federal com toda vacina que receber aval da Anvisa. "Qualquer vacina que tenha o registro da Anvisa será alvo de contratação do governo federal, não existe essa discussão (a respeito da rejeição da vacina chinesa), isso aí é uma discussão criada", disse.

Pazuello disse, ainda, que cabe à pasta, e não aos estados, planejar a vacinação contra a covid-19 no Brasil. Ele disse que o momento é de união nacional. "Compete ao Ministério da Saúde realizar o planejamento e a vacinação em todo o Brasil. Por isso o PNI (Programa Nacional de Imunizações) é um programa do ministério. Não podemos dividir o Brasil num momento difícil", disse Pazuello.
Cobrado pelos governadores, o ministro procurou mostrar que está tentando coordenar um plano nacional, acima das divergências políticas. "O PNI (Plano Nacional de Imunização) é nacional. Não pode ser paralelo. A gente tem que falar a mesma linguagem. Nós só temos um inimigo, o vírus. Temos que nos unir", disse Pazuello.

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Efeitos nocivos da politização 

09/12/2020

 

 

Para especialistas ouvidos pelo Correio, a reunião entre os governadores e o ministro da Saúde exacerbou a politização em torno da vacina. O professor de Ciências Políticas da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC Rio), Ricardo Ismael, argumentou que as ações de Doria são um jogo político para sua próxima campanha, em 2022. "É evidente que o governador João Doria quer protagonismo nessa questão para assentar terreno para sua candidatura como presidente da República. Então, ele está procurando entrar em um caminho de que São Paulo vai liderar o processo nacional de vacinação, o que é certamente um absurdo", criticou.

Na avaliação de Ricardo Ismael, o posicionamento de Doria pode causar uma situação incontrolável. "Ele está tentando criar um clima no país que parece que só São Paulo vai poder salvar as pessoas; isso é uma irresponsabilidade. É puro eleitoralismo, somente campanha para presidente da República", disse.

O cientista político ponderou, no entanto, que Doria tem o direito de reclamar da forma como o Palácio do Planalto tem lidado com a CoronaVac. Ele lembrou que o processo de cadastramento das vacinas precisa ser coordenado, papel do governo federal, e que São Paulo não pode se colocar acima dos outros estados da Federação. "Se existem vacinas que estão para chegar, é preciso que esse processo seja coordenado, porque a vacina vai ter que ser aplicada em cada estado, em cada município. Vai ter que ter um planejamento", finalizou.

Mensagem confusa
O professor de Ciência Política da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) Geraldo Tadeu argumentou que a crise é consequência da omissão do governo federal em relação à pandemia.
"Na ausência de uma política nacional, as relações políticas estão se redesenhando. Então, veja que os governadores têm que se mobilizar para fazer uma reação com o ministro da saúde. Nós já tivemos outros episódios de mobilização do próprio Congresso, como o auxílio emergencial, que foi uma decisão do Congresso", pontuou.

Tadeu ressalta os movimentos políticos com a guerra da vacina. "É basicamente o Doria de um lado e o Bolsonaro de outro, e os outros governadores em segundo plano. É um jogo puramente político, uma guerra entre eles dois", comentou.

Geraldo lembrou, no entanto, que a situação prejudica enormemente o combate à pandemia da covid-19. "Você não tem mensagens claras para a população. Você não tem uma autoridade clara, como tinha o Mandetta, que realizava as entrevistas coletivas e dizia 'façam isso, não façam aquilo'. Então, tudo é permitido e isso mostra a evolução da pandemia ao sabor das circunstâncias", finalizou.

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Plano nacional é a melhor solução 

09/12/2020

 

 

Além do embate entre João Doria e o ministro Eduardo Pazuello, a reunião de ontem revelou o desconforto de governadores com a intenção do estado de São Paulo de iniciar a imunização em janeiro, antecipando-se ao planejamento anunciado até aqui pelo governo federal.

Aliado do presidente Jair Bolsonaro, o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), criticou o colega paulista. "Nos preocupa o governador de São Paulo dizer que vai iniciar vacinação em 25 de janeiro. Isso coloca em jogo a credibilidade dos demais governadores. O plano nacional não é responsabilidade dos governadores", afirmou Caiado.

Caiado citou um "desconforto enorme" após o anúncio de Doria. "Nunca vi na vida um estado querer sair na frente de outro", completou Caiado, que é médico e enfrenta novo crescimento de casos de covid-19.

Para o governador de Goiás, Pazuello deixou claro que medidas estão sendo tomadas pelo governo federal e que cada governador está preocupado em fazer vacina chegar o mais rápido possível à população.

Outros governadores também relataram o compromisso do Ministério da Saúde. "Há uma possibilidade real de ter em janeiro bem mais vacinas do que estava previsto no Plano de São Paulo. E nisso vai permitir que a gente tenha vacina em São Paulo, mas vacina também em outros lugares do Brasil", disse Wellington Dias (PT), governador do Piauí. Dias comentou não ser "razoável" um estado ficar à frente dos outros na vacinação contra a covid.

Ação no STF
O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), assumiu uma postura ambígua. De um lado, criticou a iniciativa de São Paulo, apesar de se tratar de um governador tucano. "A considerar a tradição do Programa Nacional de Imunizações, não faz sentido abrir uma disputa entre os Estados e municípios ou que cada ente subnacional estabeleça uma política própria. Temos o PNI e este é o melhor caminho para viabilizar a vacinação de todos os brasileiros", afirmou.

Ao mesmo tempo, Leite disse ter entrado em contato com o Instituto Butantan, a fim de adquirir a CoronaVac para seu estado. "Eu tenho responsabilidade com 11,5 milhões de gaúchos, a gente não pode confiar, basear a política pública apenas na confiança. Eu pessoalmente confio na gestão do Pazuello dentro de tudo vivido até aqui. Mas observa-se o quanto se politizou o tema da vacina, e eu não posso gerar problemas à minha população a partir de uma confiança pessoal. Tenho planos de contingência, para frustração dessa confiança, dessa expectativa", disse o governador.

Flávio Dino (PCdoB), governador do Maranhão, também tomou providências. Anunciou ter entrado com ação no Supremo Tribunal Federal com o objetivo de que estados possam adquirir diretamente vacinas contra o coronavírus autorizadas por agências sanitárias dos Estados Unidos, União Europeia, Japão e China.

*Estagiários sob supervisão de Carlos Alexandre de Souza