Título: Constituição aprofunda divisões
Autor: Almeida, Rodrigo de
Fonte: Jornal do Brasil, 28/09/2008, Internacional, p. A20

País vai a referendo hoje por Carta que, na visão de analistas, fracassa em construir o futuro.

ENVIADO A MÉRIDA*

A defesa da mudança vem do historiador Enrique Ayala, reitor da Universidade Andina Simón Bolívar: a Constituição do Equador ¿ que hoje pode ser substituída por uma nova, no referendo que levará às urnas cerca de 10 milhões de equatorianos ¿ fracassou na tentativa de "construir o que os equatorianos desejavam ser o seu país do futuro".

Socialista histórico, com a experiência de quem integrou a Assembléia Nacional Constituinte de 1997-1998 e hoje é deputado, Ayala apontou o dedo contra a atual Carta à platéia de intelectuais reunidos na 18ª Conferência da Academia da Latinidade, que ocorreu esta semana na cidade de Mérida, no México.

¿ Fracassou ¿ insistiu o historiador. ¿ Lamentavelmente tem problemas e contradições. Deveria promover mudanças, mas suas fraquezas decorrem em grande parte das limitações ideológicas de quem a formulou.

Convidado a falar sobre Fronteiras e Estado Nacional na Região Andina, Enrique Ayala analisou os textos constitucionais do Equador e da Bolívia, mostrando semelhanças e diferenças e identificando os pontos que resultam em problemas na unidade desses países. Equador e Bolívia foram duas das preocupações centrais dos debates realizados em Mérida ¿ especialmente no que diz respeito a como os Estados boliviano e equatoriano lidam com as nações indígenas e mestiças.

¿ Ambas as constituições reafirmam o caráter plurinacional e multicultural do Estado. Mas com diferenças ¿ sublinhou Ayala. ¿ Na Bolívia, nações indígenas são constituintes do Estado, como entes federativos, com capacidade de livre determinação. A Constituição do Equador reconhece povos e comunidades negras, indígenas, mestiças, mas o Estado não se organiza a partir delas.

Essa diferença, para os equatorianos, implica o rechaçamento das nacionalidades. Ayala citou números reveladores. Apenas 6% da população se afirma como indígena. Mais de 70% se considera mestiça.

O socialista apontou, porém, para o risco da fragmentação nacional nesses países. As perguntas vieram em série:

- Será que temos de construir Estados diversos? Não é possível contar com elementos que unifiquem as diversas culturas? Não precisamos de uma cidadania universal, capaz de respeitar a diversidade, a interculturalidade e plurinacionalidade? Temos de aceitar que somos desiguais para aceitar uma sociedade intercultural.

Para ele, cultura não pode ser um elemento de diferenciação, mas de unificação.

Polêmica

A atual Constituição equatoriana foi aprovada pela Assembléia Constituinte em 1998 depois de uma crise política que culminou com a destituição do presidente Abdalá Bucaram. Desde então, o Equador teve sete presidentes que não concluíram o mandato.

A constatação de Ayala sobre as debilidades do texto atual, no entanto, não exime de polêmica o projeto que vai a referendo hoje. Redigido e aprovado no ano passado, conta com 444 artigos, além de um chamado Regime de Transição ¿ nele, serão criadas leis e regulamentos que permitirão a aplicação do texto.

A pedreira tem nome: a possibilidade de extensão do mandato do presidente Rafael Correa. Se a Constituição for aprovada, os equatorianos iniciarão um novo período de campanha eleitoral para a escolha de todas as autoridades públicas, incluindo Correa, nos primeiros meses do ano que vem. Se vencer, o presidente ficará no poder por um total de 10 anos.

A oposição também atacou até à véspera as viagens e o empenho do presidente em promover a Constituição ¿ segundo os adversários de Correa, a campanha estaria sendo financiada pelo dinheiro público.

O projeto da nova Constituição também tem recebido ataques das igrejas Católica e Evangélica. O texto, argumentam, abre o caminho para o aborto e o casamento entre os homossexuais.

Confitos

¿ Enquanto a Bolívia vem optando pela saída da Confederação para resolver seus conflitos internos, o Equador não chegou à idéia do pacto ¿ sugere o cientista político Candido Mendes. ¿ Mas é preciso entender a relevância dos dois casos para saber como se aplicam e se distorcem as posições libertárias.

Enrique Ayala completa:

¿ Um novo modelo implica não vencer o neoliberalismo, mas construir uma nova sociedade assentada sobre a democracia radical e a soberania. Isso implica mudar a estrutura do Estado e da sociedade, de modo a recuperar os recursos naturais para o país e a soberania sobre seu território.

Da batalha de padrões de democracia ¿ nos quais Equador, Bolívia e Venezuela são alguns dos exemplos mais polêmicos, para o bem ou para o mal ¿ resulta o que o sociólogo uruguaio Enrique Larreta chama de necessidade de uma "democracia profunda ou contra-democrática". Nela, diz o professor, respeitam-se as instituições e os setores excluídos. Conseguiremos? ¿ ele próprio questionou:

¿ A experiência democrática transformou a América Latina nesta última década. Mas estamos assistindo ao renascimento dos populismos, autoritarismos e crescente dificuldade de funcionamento da esfera pública. A democracia aparece claramente como uma condição. Mas é uma condição indeterminada que, em certas circunstâncias, esbarra em contextos econômicos e sociais altamente voláteis.