O globo, n.31903, 11/12/2020. Sociedade, p. 15

 

Entrevista – Carla Domingues

Ana Lucia Azevedo 

11/12/2020

 

 

À frente do Programa Nacional de Imunizações (PNI) por oito anos (2011-2019), Carla Domingues conhece como poucos os desafios da vacinação no Brasil. Ela está alarmada com as consequências da disputa política entre o governo federal e os estados em torno do combate da pandemia. Considera a existência de planos paralelos nos estados uma receita para um desastre colossal. E critica também o fato de não existir sequer uma campanha de comunicação para a população compreender que muita gente ficará de fora da vacinação em um primeiro momento. Não há, por exemplo, imunização prevista para as crianças, central para a decisão de pais na volta às aulas.

A epidemiologista diz ainda aplicar a vacina da Pfizer ainda este mês, como aventou o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, não é factível, tanto pelas especificadaes logísticas do imunizante quanto pelo governo federal não ter se preparado com antecedência para tanto.

Como a senhora vê a situação hoje no Brasil às vésperas da vacinação contra a Covid-19?

Muito ruim. A polarização política criou um cenário que nunca vimos antes, de disputa entre governo federal e estados. É impossível termos planos nacionais e estaduais paralelos e isso dar certo. Antes, havia consonância. Esta é a primeira vez que vemos um estado correr sozinho. Há muita demagogia, mas também há excessos, de todos os lados. É um descontrole que impede o combate da pandemia. É o Ministério da Saúde que deveria decidir quem receberá qual vacina e onde. A estratégia de vacinação não pode ser pulverizada.

O que a senhora acha de o governo federal não anunciar a incorporação da CoronaVac no plano?

Para a população brasileira, é muito ruim. Ela deveria ser incorporada.

E como vê a possibilidade de estados usarem vacinas sem o registro da Anvisa?

É péssimo por vários motivos. Não dá segurança à população e, ao mesmo tempo, mostra o esvaziamento da Anvisa. Também temos visto ações políticas sem pé na realidade. O Paraná, por exemplo, quer fazer vacina (o estado iormou acordo com a Rússia) , mas não tem experiência nisso. 

O governo federal diz que vai trazer a vacina da Pfizer/BioNTech talvez até mesmo este mês. É possível?

Claro que não é possível vacinar em massa dessa forma! O Reino Unido e os Estados Unidos se preparam para isso há meses, montaram uma estratégia. Nós não temos nada. Teríamos que ter nos preparado e não o fizemos.  Não se compram refrigeradores que mantenham a vacina a -75° C da noite para o dia. Não estamos falando aqui de freezer menor, de laboratórios de pesquisa. Não é uma geladeira que você compra em qualquer loja. São equipamentos especializados, difíceis de encontrar no mercado internacional em grande quantidade. A Pfizer disse que poderia garantir o transporte. E o armazenamento? Hoje não há na indústria nacional quem possa fornecer esses refrigeradores em grande quantidade, mesmo que a vacinação seja só nas capitais.

Também há o Covax. O que podemos esperar?

Nada nesse momento. Não se sabe ainda quando teremos uma vacina pelo Covax e qual será. É uma promessa de receber vacina, e só isso por enquanto. Precisamos de opções. E o Brasil só tem à vista a da AstraZeneca/Oxford e a CoronaVax, por São Paulo. É muito pouco.

O Brasil tem o PNI, um dos melhores programas de vacinação do mundo. O quanto o PNI pode nos ajudar?

O PNI tem expertise, mas não faz milagre. Vacinação é planejamento. Não há planejamento contra a pandemia. E temos à nossa frente o maior desafio da história da vacinação. É colossal e não se prepararam para ele. Jamais se fez uma vacinação em duas doses com tão curto intervalo de tempo. Para ter êxito, será necessário garantir que cada pessoa tome duas doses da mesma vacina no período certo. É completamente diferente das campanhas de pólio, por exemplo.

Vai ser muito mais complexo?

Sim. Muito mais complexo. Para começar, você terá que pegar o nome da pessoa, endereço, CPF, e ir atrás dela, caso não apareça para tomar a segunda dose. Isso em todo o país, em todas as condições. Até agora não temos plano de logística, não sabemos que vacina vamos usar, não temos bem estabelecidos nem que grupos serão vacinados. E estou falando só de um plano nacional. Imagine agora com os planos estaduais.

O que acontece?

Digamos que o governador de São Paulo consiga doses da CoronaVac para vacinar pessoas de outros estados. Suponha que uma pessoa de Brasília vá se vacinar em São Paulo. Ela terá que tomar a segunda dose da vacina de São Paulo no prazo certo. E precisaremos garantir isso. Ela não poderá, por exemplo, tomar a CoronaVac e depois outra vacina que chegue a Brasília ou não tomar a segunda dose. E o Ministério da Saúde precisa ter controle de todas essas informações para poder avaliar a efetividade da vacinação. Coloque isso em escala e perceba o tamanho do desafio.

Naturalmente, no entanto, existe grande expectativa sobre a vacina. O que os brasileiros podem esperar?

Veja bem, nos falta até uma campanha de comunicação. Por exemplo, as pessoas precisam saber que tem um grupo enorme que não vai se vacinar de jeito nenhum por um bom tempo. E são justamente as pessoas que querem mais se vacinar, o grosso da força produtiva, que não se enquadra em nenhuma categoria emergencial. Por outro lado, os idosos, que já não têm saído de casa com medo, precisarão ser convencidos a tomar a vacina.  E há ainda as crianças. Sem um plano de comunicação adequado, a vacinação não funcionará.

O que podemos esperar para as crianças?

Elas não serão vacinadas. Ouço muita gente dizer que espera a vacina para mandar os filhos de volta para a escola. O governo precisa ter a clareza de dizer para essas pessoas que, se depender de esperar por uma vacina, seus filhos não vão voltar para a escola.

Por que?

Porque para esta pandemia, as crianças não são um grupo de risco, uma prioridade. Essas vacinas não são para elas. As pessoas abaixo de 18 não serão vacinadas tão cedo. Sequer há dados de ensaios clínicos. Não dá para esperar pela vacina para voltar para a escola.

E as pessoas que têm comorbidades para a Covid-19?

O plano apresentado pelo Ministério da Saúde cita comorbidades, mas não as detalha. E há muitas situações que só poderemos avaliar depois de iniciada a vacinação. Diabetes, por exemplo. A doença é uma das comorbidades de maior risco de agravamento de Covid-19. Temos estimados 20 milhões de diabéticos no Brasil, cerca de 10% da população. Qual será o efeito das vacinas sobre os diabéticos? Essa é uma doença autoimune, eles podem ou não receber qualquer uma dessas vacinas? Há outras situações que precisam ser acompanhadas e não há um plano. 

Por exemplo?

Há coisas que só se veem quando as vacinas saem dos testes controlados e chegam ao dia a dia. O que acontecerá se uma pessoa vacinada contrair dengue? Pode ser que nada. Mas não se sabe, pois nunca tivemos essa situação anteriormente. E as que sofrem de doenças autoimunes? Tudo isso precisa ser acompanhado. Plano de vacinação tem que incluir tudo isso. Essa é uma doença nova, um terreno desconhecido, justamente por isso planejar é tão fundamental. Não se pode deixar esse tipo de decisão ser norteado por política, tem que ser técnico e muito bem-feito, muito estruturado.

Muita gente está na expectativa da vacina para se livrar da máscara e do distanciamento social. Isso será possível?

Não. Teremos que continuar a usar máscara e a fazer distanciamento por um bom tempo. Primeiro, porque apenas parte da população será vacinada. Além disso, não se sabe se as vacinas vão conseguir impedir a transmissão ou apenas que as pessoas adoeçam com Covid-19, o que já será um ganho enorme. Também não se sabe quanto tempo dura a imunidade. Mas já temos muito para tão pouco tempo porque esta é uma doença nova e a ciência conseguiu desenvolver mais de uma opção de vacina.

O Brasil deveria ter em parelelo seu próprio programa de desenvolvimento de vacina?

Claro que sim! É uma questão de segurança nacional e a pandemia deixou isso evidente. O Brasil é um grande produtor de vacina, mas não desenvolve nada. O país aprendeu a copiar a vacina dos outros. Não temos uma vacina nossa. Isso chega a ser ridículo. Só produzimos o que copiamos. Será que vamos passar a vida toda refém de outros países, meros copiadores? A China é um exemplo de um país que já foi copiador, desenvolveu a própria ciência, e hoje tem qualidade para competir em pé de igualdade com os americanos.