Valor econômico, v. 21, n. 5169, 18/01/2021. Brasil, p. A14

 

Cenário caótico de Manaus pode se repetir no país, alerta pesquisador

Cristiane Agostine

18/01/2021

 

 

Nova linhagem do coronavírus reforça a necessidade do isolamento social, segundo especialista da Fiocruz Amazônia
Médico infectologista e pesquisador da Fiocruz Amazônia, Marcus Vinícius Guimarães de Lacerda adverte sobre os riscos de o cenário caótico no sistema de saúde de Manaus se repetir pelo país e diz que a explosão de casos de covid-19 deve servir de alerta.

A nova linhagem do coronavírus identificada na capital amazonense tem um potencial maior de transmissão e de reinfecção, segundo o pesquisador, e reforça a necessidade do isolamento social, já que a vacinação em massa no país ainda vai demorar.
O especialista em saúde pública diz que a boa notícia é que as vacinas contra a covid-19 têm se mostrado capazes de gerar anticorpos contra a nova cepa. E faz um aviso: o uso de medicamentos como cloroquina para tratar a doença não resolve. “As pessoas estão morrendo com remédio.”

O pesquisador afirma que o aumento expressivo de casos de covid-19 nas últimas semanas, sobretudo depois das festas de fim de ano, mostra que o Brasil não está muito diferente de Manaus. Um exemplo, diz, é a cidade do Rio de Janeiro, que estava sem leitos de UTI exclusivos para pacientes com covid-19 na sexta-feira. “O número de casos está aumentando no país e não é às custas de Manaus. Até a vacina chegar, as pessoas têm que ficar trancadas em casa”, afirma.
Lacerda diz que é um equívoco “achar que tem remédio” contra a covid-19 e afirma que a vacinação e o isolamento social são as únicas medidas que podem salvar vidas.

Ele coordenou os primeiros estudos clínicos no Brasil sobre a eficácia e a segurança do uso da cloroquina ainda no início da pandemia e verificou que o medicamento, além de não reduzir a letalidade da doença, pode produzir efeitos colaterais graves, que podem levar à morte. A pesquisa foi interrompida em abril e tornou-se alvo de críticas de bolsonaristas. O infectologista e a equipe de pesquisadores foram alvos de perseguição, fake news, e Lacerda foi ameaçado de morte. O Ministério Público Federal determinou a instauração de inquérito questionando a metodologia científica dos estudos, que envolveram mais de 70 pessoas de instituições como a Fiocruz, a Fundação de Medicina Tropical e a USP.

Nove meses depois da interrupção do estudo, Lacerda reitera as críticas ao chamado “tratamento precoce”, com vitaminas e medicamentos sem comprovação científica, defendido pelo Ministério da Saúde e pelo presidente Jair Bolsonaro. “O governo federal fica insistindo para tratar com remédio, quando deveria ter começado a vacinar no início de dezembro. É a única forma de aumentar os anticorpos na população”, diz. “Não é à toa que os outros países já começaram”, afirma. “Gostaria muito que os remédios funcionassem. Todo mundo usa remédio em Manaus, ou já usou. E é óbvio que não funcionou. As pessoas estão morrendo com remédio.”

Na segunda-feira passada, três dias antes de Manaus ficar sem cilindros de oxigênio para atender os pacientes, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, esteve na cidade e voltou a defender o uso de medicamentos e vitaminas contra a covid-19. “Tratamento precoce. Senhores, senhoras, não existe outra saída”, disse, reforçando a necessidade do uso imediato da medicação, antes mesmo de testes para identificar a doença. “Isso tem que ser estampado na primeira página dos jornais.” Na semana retrasada, o ministro já havia sido avisado pelo governador do Estado, Wilson Lima (PSC), sobre a gravidade da crise sanitária no Amazonas e a iminência do colapso.
O governo federal ignorou sucessivas vezes os alertas sobre o caos em Manaus. Além dos avisos da gestão estadual e da empresa que fornece oxigênio para o Estado, até mesmo a cunhada do ministro o comunicou sobre o problema “Tudo o que me foi pedido, 100% foi entregue ou está sendo entregue”, disse Pazuello, na ocasião. “Estamos vivendo crise de oxigênio? Sim. Estamos vivendo crise de abertura de UTI? Sim. A saúde em Manaus começa com 75% de ocupação [dos leitos]. Qual é a novidade? É muito importante medidas que diminuam a entrada [nos hospitais]”, afirmou, defendendo o “kit anti-covid”. “Quando cheguei ontem [dia 10] em casa, estava a minha cunhada com o irmão que não tinha oxigênio nem para passar o dia. Acho que chega amanhã. O que você vai fazer? Nada. Você e todo mundo vão esperar chegar o oxigênio para ser distribuído. Não tem o que fazer. Então, vamos com calma.”

O aumento de casos de síndrome respiratória no Amazonas tem sido registrado desde outubro. Em dezembro, a Fiocruz da Amazônia identificou a variante do vírus, que tem maior potencial de transmissão e está reinfectado quem já teve covid-19. O pesquisador diz que as festas de fim de ano foram o “impulso” para o aumento de casos, com um volume de transmissão muito alto do novo coronavírus.

“A única coisa que pode salvar é vacina”, diz Lacerda. “Os dados da Fiocruz do Amazonas têm sido compartilhados com as todas as empresas produtoras da vacina. Não acreditamos que a nova cepa vai ter algum problema com a vacina. A vacina ainda é capaz de gerar anticorpos contra a nova cepa. Esta é a boa notícia.”