Valor econômico, v. 21, n. 5171, 20/01/2021. Brasil, p. A6

 

De olho na vacina da Índia, Brasil recua na OMC

Assis Moreira

20/01/2021

 

 

País não se mostra mais contra plano que quebra patentes ligadas à covid-19
O governo brasileiro adotou ontem um recuo diplomático que chamou atenção na cena comercial. O país desta vez não manifestou mais oposição aberta a uma proposta da Índia e da África do Sul que envolve patentes e covid-19, na Organização Mundial do Comércio (OMC).

O Valor apurou que a constatação em Brasília é de que o país tem não só sofrido muita pressão internacional por ter ficado ao lado de países desenvolvidos nessa questão, como também não se pode ignorar a tentativa desesperada de comprar o modesto volume de 2 milhões de doses de vacinas indianas o mais rápido possível.
Em outubro, Índia e África do Sul submeteram aos membros da OMC proposta para que fosse permitido aos países suspender patentes e outros instrumentos de propriedade intelectual vinculados ao combate à pandemia de covid-19. Isso duraria pelo menos até uma vacinação generalizada globalmente, imunizando a maioria da população mundial.

Mas o Brasil, que tinha uma posição histórica a favor de quebra de patente farmacêutica, ficou então ao lado de EUA, União Europeia, Japão, Suíça e outros países desenvolvidos, contra a proposta.

O argumento naquele momento foi de que o Acordo Trips - tratado sobre propriedade intelectual integrante do conjunto de acordos que resultou na criação da OMC - já tem flexibilidades que podem ser utilizadas pelos países-membros para atingir objetivos de saúde pública. E, se houver problema de oferta de medicamentos, os países podem quebrar patente para garantir o abastecimento de remédios e vacinas.
A partir daí, organizações não governamentais importantes como Médicos Sem Fronteiras colocaram muita pressão sobre o Itamaraty. A repercussão da posição brasileira piorou a imagem do governo Bolsonaro.

Ontem, uma nova tentativa de consenso fracassou sobre a proposta da Índia e da África do Sul na OMC. E chamou atenção o silêncio do Brasil. É que o governo considerou melhor ser agora mais cauteloso. Primeiro, entende que a proposta indiana na OMC não tem mesmo consenso e tende a ser engavetada. “Não adianta gastar bala nessa questão, o ônus para o Brasil foi maior que o esperado”, disse uma fonte.

Segundo, a tentativa de compra das vacinas indianas continua. O voo do avião brasileiro a Nova Déli para buscar as vacinas vai acontecer, segundo fontes, mas os indianos dizem que só podem fornecer as doses talvez em março, colocando o Brasil na fila.

Ao mesmo tempo, o governo do presidente Jair Bolsonaro se deu conta de que precisa dos insumos da China, mas tem interlocução fragilizada com Pequim. O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, não cessou de atacar os chineses. Uma fonte definiu que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), tem mais contatos com representantes de Pequim que o chanceler.

Alguns observadores consideram que a proposta de Índia e África do Sul serviria sobretudo à indústria de genéricos indianos. Já os dois países insistiram ontem que propriedade intelectual prejudica a necessidade urgente de aumentar a produção de vacinas que muitas nações, especialmente em desenvolvimento, necessitam.

Para Nova Déli, um bom número de fábricas em vários países com capacidade provada para produzir vacinas seguras e efetivas estão incapazes de utilizar essas capacidades “por causa de novas barreiras na área de propriedade intelectual”.

A Índia diz que isso é prova de que sua visão de que acordos não transparentes de licença voluntária (quebra de patente) não serão suficientes para responder à enorme demanda global de vacinas e tratamentos contra a pandemia.
“O que os países desenvolvidos disseram sobre a suficiência de tais acordos de licenciamento para aumentar as capacidades de fabricação provou ser ilusório, e as licenças voluntárias, mesmo onde existem, são envoltas em sigilo, os termos e condições não são transparentes e o escopo é limitado a valores específicos, ou para um subconjunto limitado de países, incentivando assim o nacionalismo”, acusou a Índia.

A Índia considera ainda que o mecanismo Covax - “pool” para compra de vacinas com 190 países - não é suficiente. O diretor-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, acusou na segunda-feira países desenvolvidos e farmacêuticas de contornarem esse mecanismo e fazerem acordos bilaterais, garantindo vacinas para os ricos, enquanto nações pobres continuam sem perspectiva de ter as doses suficientes.

Ontem, União Europeia, EUA, Suíça, Reino Unido e Japão, mas não mais o Brasil, voltaram a argumentar que atenuar os direitos de propriedade intelectual não resolve problemas de capacidade ou de matérias-primas que atualmente impedem suprimento suficiente de doses contra a pandemia.

Insistiram que, ao mesmo tempo em que há dinheiro público para pesquisa e desenvolvimento, a produção e distribuição de vacinas é investimento de risco para o setor privado. E que a proposta da Índia e da África do Sul é muito ampla e pouco clara.

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Nova Déli libera doses, mas não inclui Brasil

Paula Cleto

20/01/2021

 

 

Ministério indiano diz que cessão de vacinas a outros países vai ser calibrada com necessidades inernas
A Índia anunciou que vai começar a enviar carregamentos de vacinas contra covid-19 a outros países, mas não incluiu o Brasil na lista das primeiras remessas. Em nota, o Ministério das Relações Exteriores indiano informou ontem que primeiro serão atendidos Butão, Maldivas, Bangladesh, Nepal, Mianmar e Ilhas Seychelles. O órgão aguarda liberação pela autoridades regulatórias para também enviar imunizantes a Sri Lanka, Afeganistão e Ilhas Maurício.

Segundo o ministério, a Índia continuará a fornecer vacinas aos países parceiros “nas próximas semanas e meses de forma faseada”, respeitando as necessidades de seu próprio programa de imunização. “Será garantido que os fabricantes nacionais terão estoques adequados para atender às necessidades domésticas enquanto fornecem no exterior”, diz o comunicado. As exigências domésticas serão calibradas, segundo o órgão, em conjunto com a “demanda e obrigações internacionais”, incluindo os compromissos assumidos no âmbito do Covax.
No Twitter, o premiê indiano, Narendra Modi, comentou que seu país está honrado por ser um parceiro confiável da comunidade global. “O fornecimento de vacinas da covid para vários países começará amanhã [hoje] e mais virão nos próximos dias”, disse.

O governo brasileiro chegou a adesivar um avião para ir à Índia no fim de semana passado buscar 2 milhões de doses da vacina da AstraZeneca e Universidade de Oxford. Antes da decolagem, porém, autoridades indianas informaram que não seria possível fazer a entrega nesse prazo - que inclusive coincidiria com o início da vacinação na Índia.

Ontem, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, admitiu que o país asiático ainda não tinha dado “nenhuma sinalização positiva” sobre o envio dos imunizantes e que esperava resolver o caso nos próximos dias desta semana.