Título: A nova e subversiva latinidade
Autor: Mendes, Candido
Fonte: Jornal do Brasil, 01/10/2008, Opinião, p. A9

Desdobram-se as visões da América Latina, no desponte da quebra hegemônica e, de vez, de um governo diferente em Washington. A recém-terminada conferência da Academia da Latinidade em Mérida, na província de Yucatán, no México, debruçou-se sobre, ao mesmo tempo, o futuro das dominações de há menos de um lustro frente às novas multipolaridades e, sobretudo, a crise do Estado-nação entre nós, expressa pelos riscos do establishment da Bolívia e da mesma ameaça que começa no Equador.

Essas quebras possíveis nascem das assincronias históricas, em que o subdesenvolvimento sofre também tardiamente da consciência de suas recaídas, no impasse da mudança. A Bolívia de Morales e dos governadores da "Media Lune" sofre de duas defasagens históricas simultâneas. Cristalizou-se a prosperidade de Santa Cruz e de províncias vizinhas, num regime de economia semicolonial, responsável pela riqueza nacional num aparelho de produção rudimentar e de aguda concentração de suas rendas. O paraíso latifundiário extrativista não suportou uma primeira carga tributária e, sobretudo, a aplicação de seus recursos em bem do outro lado do país e da política assistencial aos desmunidos do Altiplano.

O governo eleito em 2006 quer efetivas políticas públicas nacionais, mas a partir de uma afirmação autêntica de sua identidade, que vai buscar no indigenismo ancestral e no reclamo pelo país aymara. Mas até onde é esse um denominador ainda autêntico de tal clamor ou uma contrafação ou um simulacro vivido pelo esvaziamento da alma nacional, que permite o jogo de contrafações de uma economia secularmente voltada para o exterior e para a exploração de seus fatores locais de produção?

Os tempos de Obama vão ou não defrontar, em nova etapa das hegemonias internacionais. um pseudo-indigenismo periférico, de par com um verdadeiro e lúgubre fundamentalismo americano, que vai às urnas na opção McCain-Palin e, para superá-lo internamente, em favor das identidades formadoras da nação de Jefferson e Roosevelt. Até onde a extraordinária superação que logrou Obama, das barreiras da cor, vem fracassando no acenar de um mesmo horizonte aos latinos nos Estados Unidos?

A recente conferência de Mérida da Academia da Latinidade evidenciou como a ausência de sensibilidade chicana a Obama desarma-o de um poder de voto interno, a ter peso decisivo no alarmante empate em que os Estados Unidos vão às urnas para optar entre dois países. Não há mais tempo para Obama ganhar essa alavanca crítica. Mas é, sem dúvida, a derrubada do muro no Rio Grande ou as restrições humilhantes à imigração latina que se transformarão, de saída, no gesto simbólico mais contundente para que o candidato democrata vença o congelamento das relações entre o Salão Oval e o continente, remetidas ao oblivion durante o longo inverno republicano. Sobretudo, nessa retomada do diálogo, impõe-se o descarte, de vez, da provocação de Chávez, da revolução bolivariana de fancaria, e a passagem da diatribe, do patético ao grotesco. É época, sim, e por fora dos palcos falsos montados por Caracas, de atentar ao eixo malbaratado do México e Brasil, numa política que de fato aponte à multipolaridade emergente, hoje, sob pena da volta ao espantalho de 29, que abala agora o capitalismo do século XXI muito mais do que a "civilização do medo" e o espectro de uma nova "queda das torres".

Faltou a Obama a visita prévia ao nosso continente antes das eleições, tal como recebeu a consagração da velha Europa em Berlim, Paris ou Londres. Mas é tempo de que o mundo adormecido na tranqüilidade hegemônica assente-se no eixo Brasil-México, vença os agravos de rumo e a liderança da contrafação chavista frente à clara assunção, mas ainda tão mal pressentida, do país de Lula.