Título: Uma economia, várias moedas
Autor: Gerk, Cristine
Fonte: Jornal do Brasil, 02/10/2008, Internacional, p. A21

Comunidades podem criar suas próprias cédulas, reconhecidas pelo Banco Central.

Lionza, chimarrón, momoy, relâmpago del catacumbo. Na Venezuela, as possibilidades de pagamento não se restringem ao uso do bolívar ¿ a moeda nacional. Embora o esquema monetário regional seja comparado por críticos a um retorno ao tempo de escambo feudal, a medida para incremento da "economia popular" foi aprovada em lei pelo presidente Hugo Chávez há pouco mais de dois meses, e começa a se ampliar. Pela norma, as comunidades ficam autorizadas a criar suas próprias notas para pagamento, cunhadas pelo Banco Central e autorizadas a circular regionalmente.

A lei criada para o "Fomento e Desenvolvimento da Economia Popular", no dia 31 de julho, reconhece que comunidades organizadas em "grupos de troca solidários" possam criar e nomear sua própria moeda, e estabeleçam uma taxa de referência com o bolívar, com o qual, porém, não podem ser trocadas.

As moedas só podem ser empregadas em âmbito comunitário para a troca por bens e serviços, nunca por dinheiro corrente ou por moedas de outras comunidades. Os novos papéis de compra circulam no país desde 2007. Até agora, já existem ao menos 10 modelos, todos com nomes que ressaltam a "identidade do povo", como manda a lei.

Os que utilizam os mercados de troca solidária foram batizados por Chávez de "prosumidores": junção de produtor, distribuidor e consumidor, em crítica ao sistema capitalista no qual "os poderosos se aproveitam dos mais fracos". Chávez explicou o processo no seus programa Alô, Presidente:

¿ Se eu troco os vegetais que produzo por 10 zambos (moeda) e esses 10 zambos me servem para levar um tomate e um frango, eu sou produtor e consumidor ao mesmo tempo. Estou incorporado a este mercado socialista.

Na ocasião da aprovação da lei, o ex-diretor do Banco Central da Venezuela, Domingo Maza Zavala, fez duras críticas em relação à decisão de Chávez, frisando que "emitir novas moedas a margem do sistema monetário estabelecido é ilegal". Outros economistas alegam que as moedas comunitárias podem causar inflação, já que ocorre aumento de meios de pagamento, e não na oferta de bens. Hoje, o índice inflacionário da Venezuela é o maior da América Latina ¿ 19,4% acumulados em 2008.

A medida divide opiniões no país. Leandro Area, do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Central da Venezuela, explica que ela faz parte do pacote de 27 leis que também autorizam o Executivo a legislar em matérias de emergência.

¿ Isso é um regresso ao mundo primitivo, como feudos e tribos. Não pode funcionar em nenhum país do mundo, muito menos aqui. A população nem sabe disso, é mais uma idéia de Chávez para punir o povo por não aprovar sua revolução bolivariana ¿ crava Area.

José Eroni, economista da Fundação Getúlio Vargas, concorda que isso não pode ocorrer numa economia organizada:

¿ O governo fica sem mecanismos para gerenciar a economia. Se não tem como controlar a emissão da moeda, há insegurança. Qualquer um pode montar uma gráfica e começar a emitir moeda.

Para o radialista e engenheiro venezuelano Alfredo Pérez, a medida não deve ser avaliada como um parâmetro de mercado nacional, e sim como apoio comunitário.

¿ A intenção é que a população não dependa de dinheiro e sim de acordos, para que haja qualidade de vida e se elimine a pobreza, a soberania alimentar. Em 2002, percebemos que a distribuição alimentar estava nas mãos de monopólios, e queremos mudar isso. Esse é um símbolo de independência de mercados e remete à nossa identidade cultural indígena ¿ defende.

Outras experiências

Segundo o Banco Central do Brasil, o real é a única moeda reconhecida oficialmente em território nacional, com curso forçado, a partir de uma lei de 1994. Mas sabe-se que existem em circulação clandestina algumas moedas comunitárias para apoio à economia local. Carlos Almenar, que trabalhava no Banco Central Venezuelano na confecção de moedas, conta ter produzido um sistema comunitário em seu país inspirado em notas trocadas por uma comunidade amazônica no Brasil:

¿ Fiz uma moeda chamada cambio baseada na amazonense "palma" para uma comunidade camponesa com 30 mil habitantes ¿ lembra Almenar. ¿ Aprovo a medida para economias exiladas das zonas urbanas, com condições climáticas ruins, porque é criado um banco comunitário que rege a economia e há independência. Mas é preciso ter cuidado para não se ampliar.

Eroni explica que no Brasil há também cidades com praça de troca de produtos e referências, sem impacto na economia nacional:

¿ Elas não são reconhecidas como moeda. Há comunidades que criam novos padrões de referência, como o dólar que gira escondido em algumas coisas, na cotação de produtos. Mas isso é controlado em tabelas muito localmente.

Em 1994, a cidade de Campina do Monte Alegre, em São Paulo, emitiu o "campino real", que era trocado por real na associação dos comerciantes, quando precisavam sair do município, mas o tipo de economia não foi autorizada oficialmente. A experiência também foi observada no México e na Argentina, onde teve impactos negativos.