Valor econômico, v. 21, n. 5173, 22/01/2021. Brasil, p. A3

 

Brasil estará na frente da fila de insumo, indica Pequim

Daniel Rittner

Fabio Murakawa

22/01/2021

 

 

Temor é que feriado nacional chinês dificulte solução de burocracias
O governo Jair Bolsonaro ouviu de autoridades chinesas em Pequim que “parceiros estratégicos”, como o Brasil, passarão na frente de outros países na lista de envio de insumos para a produção de vacinas contra a covid-19. Ontem, a Embaixada da China em Brasília divulgou nota em que se compromete a fazer “máximos esforços” para conseguir viabilizar essas exportações para o Brasil.

A sinalização sobre os insumos foi dada ao embaixador do Brasil na China, Paulo Estivallet, pelo ministro de Negócios Estrangeiros do país, Wang Yi. Estivallet teve a oportunidade de conversar com Wang após contato com o chefe do Departamento de América Latina e Caribe do ministério, Zhao Bentang, normalmente o interlocutor máximo da chancelaria chinesa com a comunidade diplomática latino-americana em Pequim.
Os chineses relataram, segundo um auxiliar do presidente, que o atraso no envio dos imunizantes é uma questão técnica, e não política, apesar do desgaste provocado por ataques do presidente Jair Bolsonaro e do chanceler Ernesto Araújo. Diante dos apelos para acelerar o fornecimento, eles responderam que há uma fila de países a serem atendidos, mas que “parceiros estratégicos como o Brasil” estarão na frente da fila, disse esse auxiliar.

Apesar da suposta garantia de boa vontade da China, conforme os relatos, há uma preocupação no governo brasileiro com o “timing” para equacionar o impasse. O que entrou no radar dos negociadores em Brasília é a proximidade do Ano Novo chinês, no dia 12 de fevereiro, quando o país praticamente para por uma semana - é o maior feriado nacional.
O temor é menos com eventuais paralisações na fabricação dos imunizantes por causa do feriado do que uma demora adicional para fazer contatos oficiais, obter licenças com a burocracia chinesa, providenciar soluções logísticas.

Nesses dias costuma haver uma desmobilização geral em empresas e no próprio governo em Pequim. Qualquer pendência fica mais difícil de resolver.

Os auxiliares presidenciais atribuem à pesada burocracia chinesa, além da falta de produção em escala suficiente para atender todos os países, a demora no envio dos insumos.

“Também foi indicado que a exportação de insumos para vacinas a partir da China está condicionada à aprovação do Grupo de Prevenção e Controle Conjunto do Conselho de Estado, com procedimento aparentemente novo e pouco claro para as diversas agências com as quais a embaixada conversou”, diz um telegrama diplomático escrito por Estivallet, conforme reprodução de uma fonte ouvida pelo Valor.

A embaixada em Pequim conversou ainda com representantes do Ministério do Comércio, da Comissão Nacional de Saúde (equivalente ao nosso Ministério da Saúde) e da GAAC (correspondente à Receita Federal).

A sinalização dos chineses ocorre no momento em que o país está carente de insumos para a fabricação no país da Coronavac e da vacina AstraZeneca /Oxford. O Instituto Butantan e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) possuem, respectivamente, convênios de transferência de tecnologia para fazer os imunizantes em solo brasileiro.

No comunicado divulgado ontem, a embaixada da China em Brasília afirma que “a parte chinesa tem sempre apoiado e continuará apoiando o fortalecimento de cooperação na área de vacinas entre as empresas e instituições dos dois países”.

“Em relação à exportação ao Brasil de insumos de vacinas, a Embaixada da China no Brasil tem mantido contatos com a parte brasileira e fará máximos esforços para conseguir avanços sob a premissa de garantir a saúde e segurança”, informou a nota.
Ontem, em live nas redes sociais, Bolsonaro negou haver problemas no relacionamento com a China. Ao lado de Araújo, ele também desmentiu estar sofrendo pressões dos asiáticos para substituir o auxiliar. E afirmou que os chineses precisam do Brasil para comer.

“Quem demite ministro sou eu. Ninguém procurou nem ousaria procurar”, disse. “O Brasil precisa da China, mas a China também precisa da gente. [...] A relação de um país com o outro tem interesse, não tem amor.”
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Fatura diplomática chinesa será cobrada mais tarde

Maria Cristina Fernandes

22/01/2021

 


Intrincado leilão do 5G leva a Huawei ao topo das exigências que virão pelos tropeços na questão da vacina
O pires na mão com o qual o governo brasileiro se apresenta ao presidente da China, Xi Jiping, neste momento dramático da vacinação contra a covid-19 embute uma fatura diplomática para o país. Não será cobrada agora, mas recairá sobre o Brasil no mesmo momento em que o país precisa reconstruir pontes com os Estados Unidos depois de ter sido um dos últimos países a reconhecer a vitória do novo presidente Joe Biden.

As dificuldades do Brasil em obter insumos para a produção local de suas vacinas se devem mais à inépcia do governo brasileiro em coordenar e priorizar esforços do que a uma retaliação do governo chinês às hostilidades acumuladas durante a era Jair Bolsonaro. É consenso entre negociadores que acompanham o tema, no entanto, que a má relação bilateral, guiada pela ideologização da política externa no governo Bolsonaro, não leva os chineses a ter boa vontade em destravar a operação.
Foi o que ficou claro na entrevista concedida pelo porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Hua Chnying. Ao responder a uma pergunta do correspondente do jornal “O Globo”, em Pequim sobre o atraso no envio dos insumos, o porta-voz disse que seria melhor o jornalista perguntar para a empresa envolvida na exportação. Só então fez o discurso de praxe sobre a cooperação chinesa com as políticas de vacinação no mundo inteiro e no Brasil.

É bem verdade que se trata de contratos com empresas privadas chinesas, mas embaixadas, no mundo inteiro, têm entre suas atribuições acompanhar e desenrolar entraves burocráticos das trocas comerciais entre seus países e as praças em que estão instaladas.

Entre o Brasil e a China, tudo já fluiu muito mais facilmente. Basta atestar, por exemplo, que o chanceler Ernesto Araújo não fala com o embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, o que fere o âmago da diplomacia, que é o de estabelecer relações entre países e interesses distintos.
Os chineses, por exemplo, determinaram que são necessários dois testes para quem quiser ingressar no país, o PCR, que detecta a presença do vírus, e a sorologia, que atesta a existência de anticorpos. Se o voo tiver escala, como é o caso daqueles egressos do Brasil, é preciso repetir ambos os testes. Esta exigência da retestagem na escala, no entanto, acabou por caducar para alguns países. Não foi o caso dos ingressantes brasileiros, a quem continuam sendo exigidos os quatro exames.

Some-se esse estremecimento à letargia do governo brasileiro na encomenda das vacinas e seus insumos e está feito o estrago. Na caravana que desembarcou em Pequim em novembro para inspecionar as instalações da Sinovac, por exemplo, havia técnicos da Anvisa, mas nenhum encarregado de discutir contratos de compra.

Todos os países que negociaram vacinas e insumos com a China o fizeram em meados do ano passado. A medida provisória que permite a compra de vacinas antes do aval da Anvisa só foi publicada pelo governo na primeira semana de janeiro.

O intrincado leilão do 5G no Brasil leva a Huawei ao topo de qualquer fatura a ser cobrada da diplomacia brasileira pelos tropeços na questão da vacina. A participação da Huawei como fornecedora da tecnologia 5G no Brasil, no entanto, já esteve mais difícil de ser desenrolada. Não apenas em função da contratação, pela Huawei, do ex-presidente Michel Temer como advogado, como pela posse dos democratas na Casa Branca.

A indústria do Vale do Silício, historicamente mais próxima dos democratas, e grande interessada no fim dos contenciosos com a empresa chinesa, foi uma das principais apoiadoras da carreira política da vice Kamala Harris, na Califórnia. Apesar disso, as relações com a China são, tradicionalmente, um dos temas que menos dividem democratas e republicanos. Então não se deve descartar que, na eventualidade de se agudizarem contenciosos em que o Brasil seja instado a tomar um lado ou outro, se verá numa saia justa que, definitivamente, poderia ter sido evitada.
O grau de amadorismo que atualmente domina a política externa brasileira não alimenta otimismo. A carta dirigida por Bolsonaro a Biden, saudando sua posse, é um mapa das dificuldades que os americanos podem criar para obter facilidades do Brasil. Lista todas as demandas brasileiras, como o assento na OCDE, sem pontuar trunfos nacionais na relação bilateral, como a liderança regional.

A crise das vacinas e a posse de Biden só reforçaram o cenário de dificuldades que se avolumam para a política externa brasileira. Tanto a China quanto os Estados Unidos hoje estão em muito mais condições de impor sua pauta e sua agenda ao Brasil do que já estiveram até a posse de Jair Bolsonaro.