Valor econômico, v. 21, n. 5173, 22/01/2021. Política, p. A6

 

Politização global da vacina é uma ameaça

22/01/2021

 

 

Há sinais crescentes de uso político, tanto interno como externo, das vacinas. Isso pode atrasar o processo de imunização e a recuperação da economia.
O mundo começa a assistir a uma politização do acesso às vacinas da covid-19, que pode resultar numa guerra fria da vacina. Há sinais crescentes do uso da vacina para fins políticos, internos e externos. Isso ameaça atrasar a imunização - e a recuperação econômica - e deixar sequelas nas relações internacionais. O Brasil está se dando conta disso do modo mais difícil.

O novo presidente americano, Joe Biden, herdou uma polêmica que pode dificultar a melhora das relações no Ocidente. Há uma semana a farmacêutica americana Pfizer alertou vários governos, mas não os EUA, de que atrasará temporariamente a entrega das vacinas. O Canadá foi informado que não receberá a vacina na semana que vem. A Itália, que receberá 20% a menos, afirmou que estuda processar a Pfizer, depois que o governo italiano foi acusado pela oposição de ter sido passado para trás pela empresa.

Ter mais fornecedores ajuda a evitar pressão de países produtores
A Pfizer alega que o atraso se deve a ajustes para ampliar a produção de sua fábrica na Bélgica. Mas cresce a percepção nos países afetados de que esse atraso se deve ao decreto assinado pelo ex-presidente Donald Trump, em 8 de dezembro, que diz que as vacinas produzidas nos EUA devem ter como prioridade o abastecimento do mercado americano. A medida fazia parte do política America First (os EUA em primeiro lugar), que norteou o governo Trump. À época, o decreto foi considerado vago demais e sem efeito prático.

Os europeus suspeitam que, sem poder exportar a partir da fábrica americana de Michigan, a filial belga da Pfizer passou a ter de suprir o resto do mundo, o que gerou um descasamento. Não haveria produção suficiente para atender a todos os pedidos.

O Ministério da Saúde alemão explicitou essa suspeita na última sexta-feira. Informou que o decreto de Trump implica que os fabricantes americanos estão "encorajados a inicialmente tornar a vacina disponível nos EUA". E que "as companhias assim como o governo federal [alemão] estão ansiosos para começar negociações com o novo governo dos EUA para obter ajustes”.
Acredita-se que os contratos de fornecimento de vacina, em geral confidenciais, contenham cláusula que isenta a empresa caso o país-sede requisite as vacinas, como fez Trump.

O premiê de Ontário, a maior província do Canadá, acusou o governo canadense de não ter pressionado a Pfizer o bastante e pediu ajuda a Biden para ter as vacinas. Lembrou que a fábrica da empresa em Michigan fica a poucas horas da fronteira com o Canadá e não faz sentido que a vacina venha da Bélgica.

Biden reverteu nos últimos dois dias várias políticas de Trump, mas aparentemente ainda não invalidou o decreto da vacina. É uma questão politicamente sensível. Neste início difícil de governo, ele poderia ser acusado pela oposição republicana de favorecer estrangeiros em detrimento dos americanos. Trump, de certo modo, amarrou as opções de Biden com um nó politicamente difícil de desatar.

Outro exemplo de politização parece ser o atraso no envio de vacinas e de insumos da China para o Brasil. O governador João Doria, de São Paulo, afirmou que há um mal-estar político entre a China e o Brasil, causado pelas seguidas acusações e ofensas à China por parte de autoridades brasileiras e de familiares do presidente Bolsonaro, o que pode estar causando o atraso.

Essa retaliação chinesa é bem provável. A China (assim como a Rússia) tem uma estratégia evidente de usar a vacina para expandir a sua influência pelo mundo, especialmente nos países da Ásia, África e América Latina que não compraram as vacinas ocidentais antecipadamente e que ficaram sem opções.

Além disso, a diplomacia chinesa segue algumas regras. Primeiro, o país nunca passa recibo de constrangimentos, especialmente em relações desiguais, como com o Brasil - o embaixador reclama, a mídia comenta, mas o governo não fala. Segundo, a China raramente reage na hora - os chineses são pacientes e sabem esperar para agir no momento em que podem causar mais dano. Terceiro, a China quase nunca admite uma retaliação - a atribui a problemas técnicos ou burocráticos. Por fim, a própria retaliação se submete ao interesse estratégico chinês - assim, não será surpresa se o tema da rede 5G surgir agora nas negociações da vacina.

Essa situação com a China mostra que não basta saber fazer a vacina, nem ter a licença. É preciso ter os insumos.

Já a Índia enviou ontem para o Nepal um milhão de doses da vacina da AstraZeneca, produzida localmente pelo laboratório indiano Serum Institute (o maior produtor de vacinas do mundo), uma semana depois de negar as doses imploradas pelo Brasil. Muitos brasileiros vão estranhar: por que priorizar o pequeno Nepal e não o gigante Brasil?

Como é ensinado na primeira aula de qualquer curso de relações internacionais, a política externa de um país deve ser ditada pelos interesses estratégicos nacionais, e não por ideologia nem relações partidárias ou pessoais. O governo indiano indicou que, estrategicamente, o Nepal neste momento é tão ou mais importante para a Índia do que o Brasil. Isso faz parte da política indiana de priorizar os vizinho, chamada de "os vizinhos primeiro", que visa expandir a influência do país no Sul da Àsia.

Encravado entre a Índia e a China, o montanhoso Nepal é alvo de disputa por influência entre esses dois gigantes asiáticos. China e Índia têm uma das fronteiras mais tensas do mundo e tiveram uma guerra em 1962. Para o premiê nacionalista Narendra Modi, ganhar o favor dos nepaleses vale mais do que agradar o governo de Jair Bolsonaro, com quem a Índia andou recentemente às turras em fóruns internacionais.

Finalmente, ontem o governo brasileiro afirmou que a primeira remessa da vacina produzida na Índia deverá chegar ainda hoje ao Brasil. Bolsonaro elogiou a relação com a Índia e com a China e disse que os atrasos se deveram a problemas burocráticos.

Para o economista Christopher Snyder, do Darmouth College, como estratégia geral, mas para também se proteger de riscos políticos, os países deveriam ter encomendado vacinas do maior número possível de fornecedores. Como fez a maior parte dos países ricos, mas também o Chile, que comprou adiantado vacina para toda a sua população da Pfizer, da Sinovac, a AstraZeneca e da Johnson & Johnson, além de estar no consórcio global Covax. “Quem não se garantiu irá agora para o fim da fila”, afirmou.
Ainda assim, ele diz que o investimento compensa. “É gastar bilhões [em vacina] agora para economizar trilhões” com gastos de saúde e perda de produção.