Título: A marcha mundial da desfinanceirização
Autor: Assis, J. Carlos de
Fonte: Jornal do Brasil, 05/10/2008, Economia, p. E2

PRESIDENTE DO INSTITUTO DESEMPREGO ZERO

Qualquer analista que tenha acompanhado nos últimos anos o processo que ficou conhecido como "financeirização" da economia global não se surpreendeu com a atual crise, nem tem dúvidas quanto a sua profundidade e extensão. Desde os anos 80, com o início da desregulação financeira nos Estados Unidos, sob Ronald Reagan, e com sua aceleração a partir dos 90, a órbita monetário-financeira descolou-se da economia real, ou do valor trabalho, num ritmo alucinante, impossível de prosseguir indefinidamente.

Uma dimensão dramática desse processo foi o crescimento dos chamados "derivativos", papéis praticamente sem lastro na economia real, e que, no primeiro semestre deste ano, o BIS (Banco de Compensações Internacionais) avaliou em US$ 600 trilhões ¿ ou mais de dez vezes o Produto Mundial Bruto. Já os chamados ativos financeiros ¿ debêntures, ações, títulos bancários e públicos ¿ haviam alcançado, em 2006, a cifra de US$ 167 trilhões, cerca de três vezes o PMB.

Essa vertigem era insustentável a médio prazo. Ninguém pode viver para sempre em ritmo de Cavalaria Rusticana. E deve-se notar que não se está enfocado um determinado mercado ¿ o de subprime, o de bolsa, o de crédito ¿, mas todos os mercados financeiros inter-relacionados, inclusive o de commodities. Alguns analistas têm-se se deixado levar pela aparência de que esta é uma crise do mercado subprime norte-americano, ou seja, do mercado derivado de hipotecas imobiliárias que se tornaram impagáveis. É um equívoco.

O mercado subprime é apenas um dos sintomas. É uma bolha. Igual a bolha das bolsas em 1987. Igual a bolha imobiliária japonesa do fim dos anos 80 e início dos 90. Essas bolhas, na história do capitalismo, inflam e desinflam ao sabor dos ciclos especulativos. No fim de cada um deles o sistema volta mais ou menos ao normal, às vezes com um maior grau de regulação em sua área específica. Agora não estamos diante de "uma" bolha. Estamos diante de "a" bolha.

Estou chamando o processo que se inicia com a crise nos Estados Unidos de "desfinanceirização" do mundo. É o movimento inverso ao que havia ocorrido a partir dos anos 80. A imensa bolha financeira que circula em volta do planeta terá de pousar, gradativamente, em ativos reais. É impossível evitar esse processo, pois é determinado pela fuga de maiores perdas. O máximo que se conseguirá, a partir de políticas macroeconômicas sábias, é uma aterrissagem um pouco mais suave. Entretanto, será impossível evitar perdas gigantescas privadas.

O motivo é muito simples. Tome-se o pacote de socorro norte-americano, de US$ 750 bilhões. É para segurar um mercado de hipotecas da ordem de US$ 13 trilhões. Ou seja, cerca de 7%. Obviamente, isso não dá. A única forma de sustentar esse mercado seria a recuperação da venda de casas, mesmo que a preços menores do que os vigentes no auge da especulação. Nesse caso, o mercado real funcionaria como uma hedge para perdas mínimas. Contudo, se é possível prever como isso funcionaria, não é possível prever quando.

Mas este é o caso específico do mercado de hipotecas. O que se pode imaginar dos 600 trilhões de derivativos? É claro que há dupla contagem nisso, pois o mercado de derivativos consiste, quase sempre, num jogo de soma zero, no qual algumas perdas se compensam com ganhos. De qualquer forma, é dinheiro demais em busca de um lugar onde sentar. Como na dança das cadeiras, a crise funcionou como um sinal para que cada um busque a sua. Mas há poucas cadeiras para o número de jogadores.

A primeira vítima desse processo, junto com as perspectivas de perdas gigantescas, foram os dogmas do neoliberalismo. Hoje ninguém pensa que o mercado se auto-regulará ¿ exceto, talvez, alguns republicanos radicais do Congresso dos Estados Unidos. O problema, porém, consiste em saber como e onde os governos devem intervir. O debate no Congresso norte-americano em torno do socorro de US$ 750 bilhões serviu para ilustrar que não será uma decisão simples.

É preciso considerar que esta é a primeira crise global, depois da Grande Depressão dos anos 30, numa situação de democracia com cidadania ampliada no centro do sistema. Já nos anos 30 não foi possível fazer como no Titanic, que reservou botes salva-vidas apenas para a primeira classe. Nos Estados Unidos, foi deslanchado o New Deal, preservando-se a democracia. Na Itália e na Alemanha, mesmo não se preservando a democracia, foram lançados programas de grande eficácia na defesa dos interesses populares, sobretudo para enfrentar o alto desemprego.

Agora não será diferente. Na verdade, é mais fácil prever, hoje, perdas gigantescas para os ricos (que assim mesmo continuarão ricos) do que a emergência de hordas de trabalhadores desempregados ameaçando a estabilidade social e política das nações. Os governos serão levados, por imperativo democrático, a atender primeiro os interesses dos pobres. A receita existe, chama-se New Deal. Aqui no Brasil, o Instituto Desemprego Zero está trabalhando numa versão contemporânea dele, o Projeto Cidade Cidadã: consiste no enfrentamento da crise a partir de um programa de emprego garantido associado a um programa de trabalho aplicado para regeneração das favelas. Com ele, acreditamos poder dar a volta na crise.