O Estado de São Paulo, n.46356, 17/09/2020. Metrópole, p.A13

 

Na rota do Pantanal que resiste às chamas

Vinícius Valfré

Dida Sampaio

17/09/2020

 

 

Ambiente. Percurso revela riscos e dificuldades de acesso, além de gente mobilizada em salvar o bioma

Desafios. Veículo passa por ponte precária na Rodovia Transpantaneira, em Porto Jofre, no município de Poconé (MT)

Logo no desembarque no aeroporto, vimos a cidade de Cuiabá encoberta por uma nuvem de fumaça cinza. Levamos um estoque de máscaras e precisávamos nos adaptar a essa proteção em temperaturas que passavam dos 40 ºc.

De Cuiabá seguimos – em carro alugado – para Poconé, a 110 quilômetros. Dali iríamos percorrer os 145 quilômetros de terra e cascalho da Rodovia Transpantaneira até o coração do Pantanal.

No início da rodovia, tivemos o primeiro contato com um Brasil que atrai milhares de turistas todos os anos, mas que se vê diante de uma catástrofe. O Pantanal era fumaça densa com labaredas de fogo de até 25 metros.

A estrada não é boa. Buracos e pedregulhos. As mais de cem pontes de madeira não oferecem segurança. Ora o carro passa inclinado à direita, ora à esquerda. A estrutura de uma ponte havia sido consumida pelo fogo e não havia qualquer aviso. Dida, que dirigiu a maior parte do caminho, seguiu à risca a orientação de um funcionário do governo: evitar ponte se houver desvio debaixo dela.

Mal chegamos, fomos atrás de histórias de velhos pantaneiros. Conhecemos o produtor rural Jamil Costa, de 71 anos, dono de um rebanho de 2.500 cabeças. Na conversa, ele chorou ao relatar que, dias antes, ficou cercado pelo fogo quando tentava salvar parte do gado desprendido da boiada.

A relação de \Jamil com o Pantanal é intensa. À revelia dos filhos, ele insiste em manter a criação bovina porque era assim que seu pai e seu avô faziam. Ele perdeu 90% do pasto para o fogo e tinha sérios problemas para alimentar o rebanho.

'Criminoso'. O produtor foi contundente. Disse que o incêndio neste ano no Pantanal foi "criminoso" e responsabilizou fazendeiros que chegaram nos últimos anos. Na sua avaliação, os novos não entendem as características da região. Muitos abandonam as propriedades, deixando sedimentos se acumularem nos pastos, facilitando a propagação do fogo.

Alguns dias depois, a Operação Matáá, da Polícia Federal, em Mato Grosso do Sul, Estado vizinho que abriga parte do bioma, divulgou que 25 mil hectares de área de preservação em Corumbá tinham sido queimados de propósito. Os criminosos, é o que se dizia, tinham interesse em aumentar as pastagens. Oito mandados de busca e apreensão foram expedidos.

Especialistas consultados avaliaram que as queimadas que destroem o Pantanal desde julho são resultado de diversos fatores. O crime é um deles. Mas o bioma enfrenta um desequilíbrio hídrico e climático provocado por desmatamentos nas cabeceiras de rios de outras regiões, como o Cerrado e a Amazônia. Nesses dois biomas nascem os cursos que abastecem o ecossistema pantaneiro. Além disso, o nível de chuvas este ano por lá foi 40% menor que em 2019.

A entrevista com Jamil foi feita na hora do almoço, exatamente quando ele voltava em casa. Tinha ido buscar comida para os funcionários que combatiam uma queimada. Começou a comer sem mastigar e desculpouse pela pressa. Nosso plano era registrar Jamil trabalhando para salvar o gado. Pelo caminho, nos deparamos com uma história que merecia ser registrada: biólogos de uma ONG distribuíam frutas em ilhas de alimentação para bichos que não tinham morrido queimados.

Agonia e solidariedade. Em outro local, animais mortos. Vimos jacarés, cobras e tatus espalhados pelo chão. Guiado pelos biólogos, Dida deitou-se sobre as cinzas para fotografar. Pelas condições em que morreram, os jacarés tinham se guiado por instinto para uma pequena área de vegetação onde poderia haver umidade. Um estava de ponta-cabeça. Para os biólogos, sinal de que morreu se debatendo no fogo.

Para além das imagens, a história dos biólogos que tentavam salvar animais dizia muito. Descobrimos voluntários como Karen Domingo, que dedica os dias livres ao trabalho de proteção à fauna. A distribuição de alimentos em pontos estratégicos, que ela faz, é fundamental à sobrevivência dos animais. O professor Luiz Solino era outro exemplo. O mestrado dele em Biologia teve o Pantanal como tema. Ele compunha essa rede de solidariedade para salvar os animais das queimadas. Como biólogos, veterinários, donos de pousadas, ribeirinhos. O Pantanal luta para salvar o Pantanal.