Título: Rio, capital da identidade nacional
Autor: Cesar Maia
Fonte: Jornal do Brasil, 01/03/2005, Rio, p. A14

Dom Pedro ¿ carioca desde os 10 anos ¿ com apenas 24 anos entende que estava na hora de o Brasil ficar independente, após as novas medidas centralizadoras da Corte de Lisboa. Mas só o Rio de Janeiro entendia como ele. Em uma viagem em que somou habilidade política e coragem, convence Minas Gerais e São Paulo a ficarem pelo menos neutras quanto às medidas que adotaria. E declara a Independência. Em 12 de outubro o Império é legalmente constituído e dom Pedro I, consagrado. Todo o Nordeste e o Norte mantêm-se ligados a Portugal. O carioca Pedro I organiza um exército e uma marinha para impor a ordem e a unidade nacionais, em uma guerra que durou mais de um ano, em que o Brasil de Pedro I era chamado de Rio de Janeiro. Assim mesmo, a Inglaterra só veio a reconhecer a independência do Brasil dois anos depois. Estabelecida a paz provisória, as lutas emancipacionistas se multiplicaram desde a Confederação do Equador, passando pela Cabanagem, pela Balaiada, pela Revolução Farroupilha, estas especialmente durante a Regência. O Rio de Janeiro finalmente garantiu a unidade nacional e, em razão desta, a identidade nacional ¿ ¿definida no plano simbólico como oposição ao outro¿ (Boris Fausto), o domínio colonial. Mesmo a marca fundadora da unidade e identidade nacionais e esta condição de cidade-síntese permaneceram sendo contestadas pelas décadas afora.

¿Quem governa este infeliz país é a gritaria embriagadora da capital¿, dizia o jornal O Pharol em 30 de maio de 1888, reclamando contra a lei de libertação dos escravos promulgada duas semanas antes por Isabel, princesa regente carioca, e que não incluiu a indenização aos proprietários de escravos que os consideravam parte de seu capital. A Constituição de 1891 ¿ a primeira republicana ¿ determinava a retirada da capital do Rio para o planalto central. Um de seus dispositivos mais discutidos foi o status da capital. A autonomia que se seguiu à proclamação da República durou poucos meses. Dez anos depois, o presidente Campos Sales dizia que o país era inadministrável desde esta cidade rebelde e propunha a política dos governadores como alternativa. O levante dos tenentes nos anos 30 precipitou a saída da escola militar do Rio. Ficar aqui era, segundo se dizia, muito perigoso.

Um líder civil dos tenentes ¿ Pedro Ernesto ¿ incluiu no programa de Getúlio Vargas, candidato a presidente do Brasil, a autonomia do Distrito Federal. Com a Revolução de 30, Pedro Ernesto termina prefeito do Distrito Federal e cria o Partido Autonomista do DF, que se torna amplamente majoritário na capital. Sua força levou a Constituinte de 1934 a incluir na Constituição a autonomia, com poder legislativo completo, à sua Câmara Municipal e a eleição direta do prefeito, após o primeiro, Pedro Ernesto, que seria eleito indiretamente. Ele recebeu 40% dos votos, elegendo 20 de 24 vereadores. Pedro Ernesto funda no Brasil a educação e a saúde como direito universal; funda a escola pública laica; funda a Universidade do Distrito Federal com Cecília Meireles, Hermes Lima, Portinari, Lucio Costa...; e constrói o embrião do trabalhismo. Mesmo sua proximidade com Vargas não foi suficiente. Visto como perigo, Pedro Ernesto é preso pelo mesmo Vargas, por supostas ligações com o movimento comunista de 1935. Libertado pelo STF, retorna consagrado. O DF sofre nova intervenção com a desculpa de ainda não ter criado seu Tribunal de Contas.

A repressão a intelectuais e artistas, a partir do fechamento da Universidade do DF, os transfere para São Paulo, área onde Vargas pisava em ovos depois da Revolução de 32. A Constituinte de 46 mudou muita coisa, mas não o estado de intervenção sobre a capital, com prefeito nomeado e poder legislativo castrado pelo Senado, o que levou à renúncia do vereador Carlos Lacerda ¿ de longe o mais votado em 1947. A maioria carioca do PCB na Câmara Municipal, única no Brasil, durou pouco com a ilegalidade imposta ao partido. Menos de dez anos depois se iniciava a cruzada de JK para a transferência da capital. Grupos de trabalho constituídos, metas, programas, projetos, num processo realizado em tempo recorde. Nem um só grupo de trabalho ou esforço de reflexão foi feito nesse período para pensar a situação do Rio após a mudança da capital.

De maneira improvisada surge, já no ano da mudança, a alternativa oferecida por Santiago Dantas de criar o Estado da Guanabara, que se transformou em Estado-Capital de fato. Menos de dez anos depois, o regime militar identificava o grupo político carioca capaz de minimizar esta expressão nacional carioca e de submeter o novo estado a uma posição politicamente subalterna. Mas não era suficiente e veio a fusão. Dez anos depois o Rio recupera sua autonomia, mas agora como município. E inicia um difícil processo de relançamento de suas marcas de identidade, coisa que só volta a ocorrer a partir da escolha do Rio como sede da Eco-92, quando recupera sua auto-estima e inicia um ciclo longo de grandes investimentos urbanos, sociais, culturais, ambientais, em entretenimento, afirmando sua identidade internacional.

O ciclo paralelo do narco-varejo e seu impacto dificultam a muitos enxergar este processo, este novo momento. A reconversão da cidade não é percebida e a desindustrialização necessária é vista como esvaziamento. A dimensão continental dos grandes grupos econômicos os obriga a uma racional centralização geográfica em São Paulo, que é sublinhada da mesma forma. Este ano o IBGE apresentou os dados do PIB nacional regional para 2002. E, para surpresa dos desatentos, o PIB da cidade do Rio de Janeiro, separada do Estado e, portanto, na sua condição anterior, é o terceiro do Brasil. O Estado de São Paulo, com mais de 34%, e Minas Gerais, com pouco mais de 9%, vêm à frente. A cidade do Rio de Janeiro aparece com 7,8%, quase uma Minas Gerais, e o Rio Grande do Sul, com 7,6%. O antigo Estado do Rio, incluindo o petróleo, vem bem mais abaixo, com 4,5%.

Apesar dos pessimistas de profissão, dos exotismos políticos, da nostalgia de uns, da cegueira de outros, o Rio se afirma, avança e repõe, progressivamente, sua centralidade de sempre.