Título: "Minha cabeça vale R$ 100 mil, mas não tenho medo"
Autor: Paulo Celso Pereira
Fonte: Jornal do Brasil, 27/02/2005, País, p. A2
Com 87 mortes, Xinguara é o município brasileiro com o maior número de assassinatos ligados à disputa de terras no período de 1985 a 2003. É neste ninho de crimes, no Sul do Pará, que o frei Henri des Roziers luta há 15 anos pela regularização de assentamentos dos sem-terra e contra a utilização de mão-de-obra escrava. Advogado e lider da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o religioso de 75 anos está, como centenas de outros militantes, ameaçado de morte. Na quarta-feira, o JB revelou que o Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil pediu que o presidente Lula determinasse proteção ao frade francês radicado no Brasil. Desde então, De Roziers vem sendo protegido, a contragosto, por dois policiais militares. Nesta entrevista, ele analisa os conflitos e desconfia das prisões do caso da irmã Dorothy: ¿ O Bida vai ser preso, mas o problema é que há outros muito mais poderosos por trás dele.
- O senhor está ameaçado de morte?
- Já fui ameaçado várias vezes de maneira séria desde que vim para o Sul do Pará, em 1991. Foi assim em 1994 e em 2000, quando estava para acontecer um julgamento importante em Belém. De 2001 para cá, eu não vinha tendo ameaças formais, mas no fim do ano passado recebi um telefonema muito violento e agressivo: ''Agora basta! Você incita invasão de terras. Basta! Agora está certo que você vai ser morto. Vamos te matar!'' Não dei atenção. Até a morte de Dorothy, eu não tinha preocupação, pela idade, por ser religioso, estrangeiro, advogado, e pelo apoio e a atenção das autoridades federais. Fiquei assustado pela audácia de matarem Dorothy e reconheço que tenho de repensar toda essa avaliação. Eles são capazes absolutamente de tudo.
- O senhor tem medo?
- Absolutamente não. Meus companheiros têm muito mais medo do que eu. Vejo isso de uma maneira muito simples: tenho 75 anos e, no dia do meu aniversário, um jornal deu a notícia de que minha cabeça está valendo R$ 100 mil. Mas não tenho medo. O que me interessa é o meu trabalho estar a serviço de uma grande causa, de eliminar a injustiça e a marginalidade. Sou muito feliz de poder trabalhar por esta causa, então não não vou me preocupar. Quero viver plenamente o que posso viver agora. Se eu me tornar um tipo de morto vivo, trabalhando fechado, não será mais possível me sentir inspirado e motivado. Além disso, sou um religiosos que renunciou a mulher e família. Se eu tivesse mulher e crianças, estaria extremamente preocupado.
- Está sob proteção?
- Infelizmente. Na quarta-feira, um capitão me comunicou que tinha recebido ordem de me proteger. Eu não pedi nada. O governo do Pará decidiu pela minha proteção independentemente da minha vontade. Há dois soldados para me proteger, se revezando, sempre um ao meu lado. Na quinta-feira o Márcio Thomaz Bastos (ministro da Justiça) me ligou perguntando se eu queria proteção da Polícia Federal. Avisei que não queria e, ainda assim, na sexta-feira a PF veio até a Pastoral para me oferecer novamente. Agradeci, mas não quero por enquanto, porque não estou sozinho e tenho minha equipe, que também está preocupada. Muito mais importante do que me proteger é ir atrás da causa mais profunda do problema.
- Quais são essas causas?
- A principal é que a reforma agrária não está andando, apesar das promessas do governo. Isso gera conflito. Os trabalhadores rurais foram pacientes durante dois anos, acreditaram no governo, que havia prometido as terras no ano passado. A grande maioria não recebeu nada. Agora os sem-terra não acreditam mais nas promessas. É mais um motivo para bloquear as estradas e ocupar prédios do Incra. Do outro lado, os fazendeiros estão mais preocupados porque os milhares de sem-terra avisam que a solução é ocupar. O segundo fator é a impunidade para pistoleiros e fazendeiros que promovem os assassinatos. Com extrema dificuldade, e todos os obstáculos possíveis, conseguimos algumas condenações exemplares. Mas todos fugiram.
- Quando o senhor viu a irmã Dorothy pela última vez?
- Foi em dezembro do ano passado, quando passou por Belém o relator da ONU sobre os defensores dos direitos humanos. Ele queria encontrar os defensores ameaçados e nós fomos chamados, apesar de a minha presença não se justificar em comparação com ela. Depois, no início deste ano, ela me ligou muito preocupada com os processos dos trabalhadores presos.
- Como vê a prisão dos supostos assassinos da missionária?
- Bida, o mandante, é um homem muito perigoso e de cabeça quente. Não é um grande fazendeiro, é pequeno. Vai ser preso, mas existem outros muito mais poderosos por trás dele, que usaram o Bida para ir em frente. Será que vão chegar a esses outros? Logo depois da morte de Dorothy, verifiquei que há uma responsabilidade extremamente grave do governo do Pará no assassinato, pelo menos por omissão.
- O que o governo federal tem feito?
- O governo tem muitas terras improdutivas, terras públicas griladas completa ou parcialmente. A morosidade e a má vontade do Incra, com uma estrutura esclerosada, prejudica. Alguns elementos ali são obviamente corruptos, com vícios internos, sem funcionar, burocratizado. Esse é o Incra.
- Onde mais há focos de corrupção?
- Dentro das polícias Militar e Civil, ainda há problemas muito fortes de corrupção e conivência com grupos ricos. Mas reconheço que, na minha região, os comandantes da PM não têm nada a ver com os do passado. Com a Polícia Civil, eu seria mais reservado. Quase todos os delegados chegaram com diplomas universitários, mas muitos deles ainda são corruptos. Esse é um problema para a Justiça, porque tudo depende do inquérito inicial.