O Estado de São Paulo, n.46353, 14/09/2020. Metrópole, p.A11

 

Fogo cerca rebanhos e é combatido por fazendeiros

Vinícius Valfré

Dida Sampaio

14/09/2020

 

 

Reportagem especial - A biodiversidade em chamas / 'Estadão' mostra o Brasil que produz dentro das regras, mas sofre com as queimadas no Pantanal

O velho fazendeiro e 30 de seus bois estavam encurralados pelo fogo. Jamil Costa, de 71 anos, cada minuto da idade vivido neste rincão do Pantanal de Mato Grosso, tentava guiar de caminhonete os animais desgarrados de um rebanho de 2,5 mil cabeças pela Rodovia Transpantaneira quando foi surpreendido pelo bloqueio do caminho. "Estou dentro de um círculo de fogo", disse por rádio a uma filha. "Que seja feita a vontade Dele (Deus)."

As preces do pantaneiro a São Benedito e a São José se sucediam no ritmo do aumento do bafo da queimada que se aproximava. Entre uma oração e outra, ele viu o fogo dar trégua em um dos lados e, no rumo das labaredas mais baixas, acelerou o carro na esperança de que por lá o foco fosse curto. "Mirei meu gado e esqueci de mim", disse, à noite, com a cabeça no gado deixado para trás. Uma relação de homem e bichos se rompera.

Dias antes, contou ele ao Estadão, o fogo engolira 90% do pasto nativo da fazenda de 40 mil hectares de Jamil em Porto Jofre, localidade de Poconé, a 290 quilômetros de Cuiabá. Ele decidiu, então, arrendar um curral a quilômetros dali para transferir a boiada. Mas a vida do pantaneiro não é fácil. Os focos também apareceram na nova área e o produtor teve de transferir os animais novamente de lugar.

O cerco do fogo ocorreu nessa segunda transferência. Numa tarde do começo de setembro, Jamil ajudava um grupo de amigos fazendeiros a conter uma queimada que atingia uma ponte de madeira. Foi nesse momento que, afastado dos demais, tentou trazer os animais desgarrados para onde estava a maior parte do rebanho e se viu cercado pelo fogo. Durante uma semana, o fazendeiro e seus vaqueiros não conseguiram ir atrás e saber o paradeiro dos animais – a fumaça densa impedia o monitoramento à distância e as condições de um resgate eram ainda difíceis. Para a surpresa dos boiadeiros, os bichos reapareceram dias depois, ilesos. Tinham feito um caminho próprio para se salvar das labaredas. "É um incêndio criminoso", esbraveja o fazendeiro numa conversa com o Estadão, marcada pela emoção do pantaneiro.

Ele direciona a denúncia para pecuaristas e peões sem conhecimento da região e preocupação com o meio ambiente que chegaram recentemente ao Pantanal. Jamil se abre para dizer que produz dentro das regras impostas por uma legislação ambiental, implementada a partir dos anos 1980, que pouco trouxe de impedimentos à criação tradicional do gado pantaneiro. O rebanho de Jamil é resultado de um trabalho centenário iniciado por seu pai e seu avô, em uma época em que o peão que matava onça que ameaçava o gado tinha a façanha premiada com um casal de bezerros.

Hoje, a preservação do felino é fundamental para milhares de pantaneiros que complementam a renda com o turismo. O fazendeiro faz parte de uma geração de pantaneiros que insiste contra as intempéries da criação de bovinos no Pantanal: até que um bezerro desmamado possa ser vendido por R$ 1.400, é preciso trabalhar duro por dois anos, diante do temor de catástrofes. No Pantanal, a pecuária se desenvolve há quase 300 anos, sem alterar a dinâmica do ambiente.

A figura do boiadeiro incorporada à paisagem natural tem bases reais. Tradição e modernidade sempre estiveram juntas. O ritmo da água dos rios da Bacia do Paraguai, na avaliação de especialistas, impôs limites à presença humana e forçou a integração entre o setor produtivo e o meio ambiente. No período chuvoso, que começa no próximo mês e vai até março, as águas inundam as terras baixas e retilíneas onde estão as fazendas e, entre abril e setembro, a seca permite aos animais crescerem e engordarem.

Neste tempo de seca, os pantaneiros sempre fizeram queimadas para renovar a pastagem, mas nada na proporção que afetasse a paisagem ou causasse atritos com os órgãos ambientais. A água das inundações ajuda bem na limpeza das ervas daninhas. O gado é criado solto. O fazendeiro não se sente obrigado a grandes cuidados nem a gastar com agrotóxicos, deixando para a própria natureza o cuidado diário dos animais. Daí a necessidade de saber os limites e reconhecer o ciclo da vida como parceiro.

A variação entre secas prolongadas e enchentes exige habilidade e conhecimento elevados para manejar rebanhos de pasto a pasto sem que o custo das transferências por pontes precárias de madeiras ao longo de dias inviabilize a atividade. É uma destreza que pecuarista recém-chegados não carregam no sangue e que, segundo os antigos, acaba prejudicando todo o ecossistema.

Um hectare de terra no Pantanal pode ser comprado por R$ 300 a R$ 1,2 mil. O valor é irrisório, se comparado com terras produtivas de São Paulo e Minas, por exemplo. "Vendem uma perninha da terra deles lá e compram uma porção de terra aqui. Vêm numa empolgação, mas não conhece os problemas. Na primeira paulada que levam, abandonam, vão embora e torcem para alguém comprar a fazenda", diz Jamil ao Estadão.

Ele explica que o gado ajuda a manter a vegetação rente ao chão. Pastos abandonados aumentam o acúmulo do material orgânico que pode alimentar queimadas. "Se não voltarem os pantaneiros para o Pantanal, isso (fogo) aqui não vai parar", diz. Só com profundo conhecimento é possível, no tempo de chuva, enxergar os caminhos de terra firme numa paisagem de tanta água. Mas nem os velhos fazendeiros conseguem identificar trilhas para salvar a boiada do fogo.

No início da tarde deste domingo, Jamil voltou ao combate com o fogo. Ele liderou um grupo de cinco peões em suas terras, subiu no trator e avançou para cavar uma vala e interromper as labaredas.

Situação única

"Fogo dessa dimensão ninguém nunca viu. Uma seca igual a que estamos passando eu só vi nos anos 70. E agora veio a seca, o fogo e o vento."

Jamil Costa

FAZENDEIRO