O Estado de São Paulo, n.46366, 27/09/2020. Metrópole, p.A22

 

Papa Francisco pedirá 'globalização da solidariedade'

Edison Veiga

27/09/2020

 

 

Encíclica será divulgada no Dia de São Francisco de Assis e deve destacar a fraternidade e o combate ao 'vírus da desigualdade'

Em fevereiro de 2019, em viagem aos Emirados Árabes Unidos, o papa Francisco assinou conjuntamente com o grande imã de Al Aazhar, Ahmad Al-Tayyeb, uma histórica declaração de fraternidade, pedindo paz entre nações, religiões e raças. Um ano depois, com o mundo enfrentando a pandemia de covid-19, o sumo pontífice viveu uma reclusão inédita e, portanto, teve tempo para observar os rumos do mundo e refletir. É o resultado disso que se espera quanto ao conteúdo da terceira encíclica de Francisco, Fratelli Tutti, que deve ser publicada no início de outubro.

Como sempre em termos de Vaticano, tudo é carregado de simbolismo. A carta será divulgada no dia de São Francisco de Assis (1182-1226), de quem o cardeal argentino Jorge Bergoglio emprestou o nome quando se tornou papa. Fratelli Tutti, ou "todos irmãos", é trecho de citação atribuída ao santo. Francisco, o papa, viajará até Assis no próximo dia 3, onde deve celebrar uma missa – com acesso restrito – e assinar a carta próximo ao túmulo de São Francisco. As expectativas, portanto, residem em um documento carregado da espiritualidade e do carisma franciscanos: fraternidade humana, tolerância entre todos, respeito à natureza.

Com o planeta aturdido pelo coronavírus, esse contexto deve estar presente no documento, apostam especialistas ouvidos pelo Estadão. "Em várias ocasiões, o papa Francisco tentou delinear como o mundo deve se repensar depois da pandemia e uma chave de leitura será a de um mundo mais fraterno", diz o vaticanista italiano Andrea Gagliarducci, do grupo ACI-EWTN. "A fraternidade será a chave da compreensão, o centro de um raciocínio que deve trazer a base de um mundo mais unido e mais próximo dos marginalizados."

O vaticanista acredita que a essência do texto assinado com o grande imã de Al Azhar deve estar na encíclica. E o papa incluirá expressões recorrentes de seus discursos sobre o mundo pós-pandêmico, como a gravidade do "vírus da desigualdade" e a necessidade da "globalização da solidariedade". "E haverá referências franciscanas, como inspiração."

"Ele vai abordar a solidariedade tão urgente no mundo de hoje, pós-pandêmico", diz frei Marcelo Toyansk Guimarães, da Comissão Justiça, Paz e Integridade da Criação dos Frades Capuchinhos do Brasil. "O modo como nós, franciscanos, entendemos a ecologia é muito forte no papa Francisco. Mas a fraternidade também é algo central na espiritualidade franciscana. O papa caminha na esteira de São Francisco, inspirado por São Francisco."

Importância. Na hierarquia dos documentos católicos, a encíclica é a mais importante. Dirigida aos bispos do mundo todo – e, por conseguinte, aos fiéis de todas as dioceses –, traz o chamado magistério de um papa, ou seja, os pontos basilares de sua doutrina. "Diferente de uma exortação apostólica, de uma carta pastoral, de um pronunciamento, de uma homilia ou de um tuíte, a encíclica, mesmo que não traga nada de novo sobre o tema, tem o peso de se tornar ensinamento oficial da Igreja", esclarece o vaticanista Filipe Domingues. "Trata-se de um documento que tem uma base teológica, é mais sólido e tem peso histórico."

É de se esperar a inclusão de ideias como a dita por Francisco naquela histórica celebração em que ele rezou solitário na Praça São Pedro, em 28 de março, sob chuva. "Ele disse que 'estamos todos no mesmo barco', 'Jesus é quem nos guia nessa tempestade', 'temos de nos unir para tratar desses problemas que são problemas da humanidade'", recorda Domingues. "A mensagem é que não adianta a gente achar que com soluções locais vai ser possível responder a problemas globais – e a pandemia é só um deles."

Fazer-se ouvir

"O papa escreveu uma encíclica, o que não fazia desde 2015. Num mundo que está em hiato, esta é a melhor forma de fazer ouvir a sua voz."

Andrea Gagliarducci

VATICANISTA