O globo, n. 31925, 02/01/2021. Mundo, p. 25

 

Novo apartheid

Vivian Oswald

02/01/2021

 

 

África teme ficar para trás no acesso à vacina e na recuperação econômica
No ano em que milhares foram às ruas em várias capitais do mundo — a despeito das regras de distanciamento social — protestar contra o racismo e a opressão colonial, a maior pandemia do século deixou claro que as desigualdades históricas estão longe de ser resolvidas. Mais uma vez, o continente africano ficará para trás. Sob o risco do "apartheid da vacina", os países da região lutam para não retroceder diante dos efeitos negativos da Covid-19 sobre setores-chave da economia. Enquanto 50 países já vacinaram centenas de milhares, o continente africano — com 1,3 bilhão de habitantes — só deverá começar a imunização no segundo trimestre deste ano, estima o Centro Africano de Controle e Prevenção de Doenças, agência de saúde pública da União Africana. — Não podemos atrasar, precisamos dessas vacinas e precisamos agora—disse John Nkengasong, presidente do centro, nesta semana. — Não precisamos entrar em uma crise moral, onde essas coisas são estocadas no mundo desenvolvido e nós na África estamos lutando para ter. A maioria dos 54 países africanos pretende se beneficiar das vacinas distribuídas pelo consórcio Covax, liderado pela Organização Mundial da Saúde. O consórcio anunciou em dezembro que pretende distribuir 1,3 bilhão de doses no primeiro semestre deste ano para 92 países de renda baixa e média em todo o mundo. No entanto, para uma cobertura de 20% da população desses países —o que incluiria profissionais de saúde e grupos mais vulneráveis — o Covax, que já arrecadou US$ 2 bilhões de países mais ricos, precisaria reunir mais US$ 5 bilhões até o final deste ano.

 CASO SUL-AFRICANO

Com mais de 60% dos novos casos registrados por dia no continente, a África do Sul vive uma situação peculiar. Fábricas no país devem produzir milhões de doses de vacina. Sul-africanos participam de testes. O país, no entanto, tem renda média acima do critério para receberas primeiras vacinas do Covax.Eo destino inicial das vacinas produzidas em seu território será a Europa, que tratou de assegurar o seu quinhão com antecedência. Para Yousuf Abdoola Vawda, pesquisador da Escola de Direito da Universidade de KwaZulu-Natal, na África do Sul, é preciso evitar que a pandemia de agora provoque um "apartheid da vacina", como aconteceu na epidemia de HIV. Na época, segundo ele, o único tratamento disponível na região era um antirretroviral de patente protegida que saía a US$ 10 mil (quase R$ 52 mil) por pessoa, por ano. —Foi uma terrível experiência de apartheid farmacêutico. Os ricos podiam pagar o tratamento. Masa maioria dos infectados estava condenada a uma morte evitável —disse. A medicação baixou para US$ 100 por pessoa, por ano, depois de forte pressão de movimentos da sociedade civil global. Vawda defende que a única maneira de evitar o que chamou de "nacionalismo da vacina" é fazer a Organização Mundial de Comércio( O MC) permitira suspensão das patentes para que os países pobres não precisem competir por quantidades limitadas. Segundo ele, como há várias alternativas de vacinação na mesa, os países ricos atuam seletivamente, escolhendo a solução que atenda seus interesses. O acadêmico afirma que, apesar de iniciativas que pregam a solidariedade com uma "vacina global" ou "para todos", muitos países ricos subfinanciaram o consórcio Covax. —De um lado, fazem importantes, porém pequenas, contribuições para o consórcio. De outro, costuram acordos bilaterais preferenciais com companhias farmacêuticas para assegurar suprimento mais do que necessário para imunizar as próprias populações —disse. Estudo recente do Centro de Inovação de Saúde Global da Duke University, nos Estados Unidos, mostra que os países de alta e média renda já compraram 3,8 bilhões de doses de vacinas. Pelas contas da Aliança Vacina para Todos, nove em 10 pessoas em países pobres podem ficar sem vacina neste ano. "As nações ricas, que abrigam 14% da população mundial, adquiriram 53% dos estoques das vacinas mais promissoras no último mês", afirmou o grupo que reúne a Anistia Internacional, aOxf ame a JustiçaGlobal, e defende o compartilhamento de tecnologias e quebra de patente para a produção de mais vacinas. Para a África subsaariana, que conseguiu manter númerosrel ativamente baixos de casos da doença a olongo de 2020, o Banco Mundial estima uma retração econômica de 3,3% no ano que passou. Será a primeira recessão registrada na região em 25 anos. As dificuldades econômicas devem empurrar até 40 milhões de pessoas para a extrema pobreza. "Isso apagaria pelo menos cinco anos de progresso no combate à pobreza", diz o banco em relatório de outubro, antes da segunda onda da Covid-19 atingir o continente, com um aumento de 19% dos casos na última semana.

FALTA DE VOZ

Para Michael Jennings, especialista em desenvolvimento da Faculdade de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres, a negligência comaÁfric amostra uma outra face além da falta de vacinas. Faltam vozes africanas nas discussões sobre a saúde global. E diferentes países africanos, atingidos deformas distintas pela Covid-19, têm experiências que poderiam compartilhar. Muitos deles demonstraram um rápido entendimento das medidas que precisavam ser adotadas e promoveram o engajamento da comunidade. Iniciativas como o envio de assistentes sociais para percorrer todas as casas ajudaram a conter o avanço do vírus em áreas pobres da África Ocidental. O Senegal desenvolveu o próprio sistema de rastreamento. A tragédia do Ebola em países como Guiné, Serra Leoa e Libéria, diz Jennings, ofereceu muitas lições. — Há uma necessidade urgente de se descolonizar as instituições de saúde global. Maisd ametade delas estál oc alizada na Europa enos Estados Unidos, países de origem de 80% dos seus líderes. A discussão sobre saúde global não é tão global assim, quando olhamos onde o poder está, par aonde vão os fundos, quem toma as decisões ou escolhe as prioridades —disse.

No final de novembro, os países do G20 prorrogaram por ma isseis meses amoratória das dívidas dos países mais pobres. Havia uma expectativa de que o prazo para pagamento seria estendido até o final de 2021. Até aquele mês, 46 países conseguiram empurrar US$ 5,7 bilhões para frente. Por diversas razões, o continente tem se saído melhor em número decas ose mortes pela Covid-19. Uma delas seria a população muito jovem (mais da metade terá menos de 25 anos até 2050). Fala-se também em anticorpos cruzados de outros coronavírus. Masa crise sanitária dificulta a situação num continente onde poucos podem se dar o luxo de trabalhar de casa, seja pela natureza do ofício, seja pela carência de internet ou eletricidade. A falta de um vacina cria um período mais longo no qual uma camada da população estará exposta, enquanto luta para sobreviver.

"De um lado, os países ricos fazem importantes, porém pequenas, contribuições para o consórcio. De outro, costuram acordos bilaterais preferenciais com companhias farmacêuticas" _ Yousuf Abdoola Vawda, pesquisador da Escola de Direito da Universidade de KwaZulu-Natal, na África do Sul

"Há uma necessidade urgente de se descolonizar as instituições de saúde global. Mais da metade delas está localizada na Europa e nos EUA, países de origem de 80% dos seus _ líderes" Michael Jennings, da Faculdade de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres