O globo, n. 31926, 03/01/2021. País, p. 8
Governo trava demarcações de terras indígenas
Daniel Biasetto
03/01/2021
Bolsonaro não homologou nenhum território, e 70% dos processos estão parados entre Funai e Ministério da Justiça
O governo federal, que não demarcou nenhuma terra indígena nos dois anos de mandato do presidente Jair Bolsonaro, travou internamente o andamento da maioria dos procedimentos em que os pedidos são analisados. Levantamento do GLOBO a partir de dados do Instituto Socioambiental (ISA) junto a cartórios e consultas de decretos, portarias ministeriais e publicações da Fundação Nacional do Índio (Funai) mostra que há 237 territórios com processos de demarcação já requisitados, mas 70% deles estão parados entre a Funai e o Ministério da Justiça, sem qualquer avanço, seja no que diz respeito a estudos de campo ou análises de documentos nos órgãos.
O Brasil tem 487 terras indígenas já homologadas, e os ataques de Bolsonaro à política de demarcação começaram ainda na campanha eleitoral, em 2018. No ano passado, o presidente chegou a dizer que, se dependesse dele, nenhuma homologação seria feita. “Na ponta da linha quem demarca terra indígena é o presidente”, afirmou, em junho de 2019.
A Funai e o Ministério da Justiça seriam o “início da linha”, já que são responsáveis pela identificação, estudo e declarações das terras, antes de seguir para o presidente homologar por meio de decreto. No entanto, o único movimento feito em processos de demarcação durante a gestão Bolsonaro foi a criação de cinco grupos técnicos pela Funai, depois que o órgão foi obrigado a iniciar os estudos por determinação judicial. Mesmo assim, nada andou. Estima-se que cerca de 30 terras indígenas tiveram seus processos de demarcação devolvidos da Casa Civil e do Ministério da Justiça para a Funai, com base em um parecer dado pela Advocacia-Geral da União (AGU) no qual os povos indígenas só podem reivindicar terras onde já estavam na data em que a Constituição foi promulgada: 5 de outubro de 1988.
Mais longevo presidente da Funai, que dirigiu entre 2007 e 2012, o antropólogo Márcio Meira vê com ceticismo qualquer possibilidade de avanço nos processos demarcatórios atualmente:
— As propostas do governo Bolsonaro, e é só ver o que ele e os membros de seu governo falam sobre povos indígenas, não cabem na Constituição. O que ele deseja fazer é não demarcar nenhuma terra indígena, mas isso é inconstitucional. Ele deveria não só demarcar novas terras, mas proteger as que já estão demarcadas. A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, integrante da Comissão Arns de Direitos Humanos e do Observatório de Direitos Humanos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), acrescenta
a preocupação com a discussão sobre o marco temporal. Há um processo em andamento no Supremo Tribunal Federal (STF), mas ainda não há data marcada para o julgamento.
— É uma tentativa de desvirtuar, mais uma vez, o que diz a Constituição, que nunca colocou data de validade aos direitos indígenas. A interpretação de que existiria essa data (marco temporal) quer estabelecer que os direitos dos indígenas às suas terras só terão validade se eles estivessem de posse dessas terras no dia da promulgação da Constituição —afirma Manuela. O coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Dinaman Tuxá, classifica a omissão governamental de “pacote de maldades”:
— Os reflexos são o enfraquecimento da política indigenista , o loteamento de cargos dentro da Funai para dificultar e inviabilizar ainda mais a demarcação das terras indígenas, além de enfraquecimento das políticas ambiental e de demarcação de terras. Tudo isso acarreta um aumento dos ilícitos nas terras indígenas.
GOVERNO SE POSICIONA
Questionado, o Ministério da Justiça não explicou se, nos 74 casos protocolados em que já se manifestou, os processos estão parados na pasta, se foram devolvidos com pedidos de diligências ou enviados para a Presidência homologar, fase final do procedimento. Em nota, o ministério disse apenas que solicitou à Funai que se pronuncie em relação aos questionamentos. A Secretaria-Geral da Presidência afirmou que não há nenhum processo de demarcação na Subchefia de Assuntos Jurídicos (SAJ) , responsável por analisar os atos do presidente antes da publicação no Diário Oficial da União.
Já a Funai não se manifestou até o fechamento desta reportagem.