O Estado de São Paulo, n.46374, 05/10/2020. Metrópole, p.A12

 

Papa Francisco critica desigualdades e 'vírus do individualismo' em encíclica

Paulo Favero

05/10/2020

 

 

Pontífice argentino, em terceiro texto do tipo publicado por ele, retoma temas sociais com intensidade e reflete sobre um mundo atormentado pelas consequências da pandemia do coronavírus; poeta e compositor Vinicius de Moraes é citado no documento

No dia de São Francisco de Assis, o santo mais famoso da Igreja Católica, o papa Francisco publicou sua nova encíclica, intitulada Fratelli tutti (Todos irmãos). No documento de 8 capítulos e 84 páginas (97 na versão em português), ele retoma as preocupações sociais e se opõe ao neoliberalismo. "A especulação financeira com a ganância fácil como fim fundamental segue causando estragos", adverte, reforçando que o vírus do individualismo radical é o mais difícil de derrotar.

A primeira encíclica publicada foi Lumen fidei (Luz da Fé), que havia sido iniciada por Bento XVI, seu antecessor. E ainda não trazia o pensamento do papa Francisco, que ficou mais nítido na segunda publicação, de 2015. O Laudato si' (Louvado Seja) aborda a questão do aquecimento global e a degradação do meio ambiente. Teve um impacto muito forte e levantou um debate sobre o desmatamento da Amazônia. Ontem, ele lançou sua nova encíclica, que cita o poeta e compositor brasileiro Vinicius de Moraes em um trecho.

Frei Dotto, assessor das pastorais sociais da CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil), acredita que a nova encíclica é de certa forma continuidade das anteriores. "Em um primeiro momento podem estranhar poucas citações bíblicas, mas é uma encíclica social. É um pensamento que a gente está precisando para o contexto atual, momento dramático de pandemia, com muitas pessoas na pobreza", comenta.

Para ele, o papa pensa a política como um bem comum, que construa efetivamente a democracia, e mostra que é preciso reconstruir o tecido social, de relações muito frágeis. "Ele fala que a gente precisa estar de coração aberto para gestar um mundo mais aberto. Ele tem um olhar global, mas também particular, quando fala do bom samaritano. E trabalha muito por essa perspectiva para construirmos pontes. Ele fala que para sermos artesãos de paz precisamos fazer como quem faz tricô, é ponto por ponto se entrelaçando e construindo essa rede de paz, justiça e solidariedade."

Segundo Eduardo Brasileiro, educador e membro da Articulação Brasileira pela Economia de Francisco, a encíclica coroa um processo e culmina nessa visão de São Francisco de Assis para a sociedade no século 21. "Propõe a fraternidade como paradigma do novo pacto social. Ele enxerga o diálogo como instrumento para promover a política e a economia, e entende que se isso não ocorrer vamos sucumbir enquanto sociedade, vamos morrer no processo civilizatório", diz.

Alguns trechos do documento reforçam a visão de que as desigualdades sociais são um grande problema no mundo atualmente. "É possível aceitar o desafio de sonhar e pensar em outra humanidade. É possível ansiar por um planeta que garanta terra, abrigo e trabalho para todos", explicou o papa.

Na interpretação de Eduardo Brasileiro, Francisco afirmou que a "economia não é para competição, acumulação e consumo, mas para o bem de todos". O especialista lembra que o papa Francisco não apenas publica as encíclicas, mas articula a discussão. "Ele lança e articula fóruns e debates. Ele vai ouvir os movimento populares, como foi na Bolívia, em 2015, ou vai ouvir os refugiados. Ele faz o documento tornar-se um projeto", analisa o especialista.

O coordenador de projetos do Núcleo Fé e Cultura da PUCSP, Francisco Borba Ribeiro Neto, teceu comentários sobre a encíclica para a Arquidiocese de São Paulo: "Fratelli tutti contrapõe o amor, que gera fraternidade e solidariedade, com o individualismo, gerador de exclusão, sofrimento e solidão. Mas será a fraternidade uma possibilidade real ou apenas uma ilusão bondosa? Esse é o grande desafio que a realidade apresenta à mensagem".