O Estado de São Paulo, n.46375, 06/10/2020. Metrópole, p.A16

 

Nobel expõe persistência de hepatite C pelo mundo

Roberta Jansen

06/10/2020

 

 

São 70 milhões de casos; em 2018, Brasil teve 27.773 relatos e 1.574 mortos

O Prêmio Nobel de Medicina concedido aos descobridores do vírus da hepatite C revela os grandes avanços feitos no diagnóstico e tratamento da infecção nos últimos 30 anos, mas também os obstáculos que ainda existem para a erradicação da doença até 2030, de acordo com a meta da Organização Mundial de Saúde (OMS).

São pelo menos 70 milhões de casos hoje no mundo, com mais de 400 mil mortes por ano, segundo a OMS. No Brasil, cerca de 700 mil pessoas vivem com hepatite C. De acordo com o último boletim, foram 27.773 mil novos casos e 1.574 mortes em 2018. As regiões mais atingidas do planeta são as da Europa Oriental, Egito, Índia e algumas partes da Ásia. A hepatite C ainda é a principal responsável pelos casos de cirrose e câncer de fígado – que podem levar à necessidade de um transplante.

Os pesquisadores americanos Harvey J. Alter e Charles M. Rice e o britânico Michael Houghton foram os laureados com o Nobel de Medicina por suas descobertas que levaram ao desenvolvimento de drogas capazes de curar a doença em 99% dos casos. "Pela primeira vez na história, a doença pode ser curada, aumentando as chances de erradicação do vírus da hepatite C no mundo", justificou o comitê do Nobel, no anúncio em Estocolmo.

O grande desafio agora é fazer com que os remédios se tornem disponíveis para todos a um custo mais baixo do que o atual, evitando a disseminação viral que ainda ocorre sobretudo entre usuários de drogas injetáveis. No Brasil, o remédio é distribuído gratuitamente pelo SUS. "O que precisamos agora é da vontade política de erradicar a doença", afirmou Alter, depois de ser informado sobr e a premiação.

Outro grande desafio é a subnotificação. Muitas vezes, a infecção no fígado leva até 30 anos para manifestar os primeiros sintomas (por isso é chamada de doença silenciosa) e as pessoas não sabem que estão infectadas. Não diagnosticada e não tratada, a doença evolui perigosamente para a cirrose e o câncer de fígado.

Os cientistas já conheciam os vírus da hepatite A e B, mas apenas em 1989 o grupo de Alter conseguiu identificar o vírus da hepatite C. "Hoje, tomamos como certo que, se recebermos uma transfusão de sangue, não vamos ficar doentes", afirmou Rice. "Mas não era assim antes de podermos testar todos os estoques de sangue."

Atualmente trata-se da única doença viral crônica que pode ser curada em praticamente todos os casos com apenas poucos meses de tratamento. "Esse é um dos maiores casos de sucesso da medicina moderna", resume o infectologista Alexandre Naime Barbosa, chefe do setor de infectologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp). "Em pouco mais de 30 anos, identificamos um agente não conhecido, isolamos o vírus, chegamos a um diagnóstico preciso e desenvolvemos um tratamento capaz de curar a doença em 99% dos casos."

Biografia. Alter, de 85 anos, trabalhou durante décadas no Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos e continua em atividade até hoje. Houghton, de 69 anos, trabalhou na farmacêutica Chiron, na Califórnia, antes de ir para a Universidade de Alberta, no Canadá. Rice, de 68, trabalhou com hepatite na Universidade de Washington, em St. Louis e, atualmente, está na Universidade Rockefeller, em Nova York, nos EUA.

Alter foi o primeiro a descobrir que muitos pacientes que não apresentavam o vírus da hepatite A ou B também desenvolviam a inflamação no fígado. Por anos, no entanto, inferia-se que haveria um outro vírus, que eles chamavam de não-a e não-b, mas não se conseguia isolá-lo. Somente em 1989, o grupo de Houghton conseguiu isolar o vírus.

"Trabalho com hepatite desde os anos 1980 e te digo que a gente apanhou, ela deu um baile na gente", afirmou o infectologista Celso Granato, da Escola Paulista de Medicina, referindo-se à dificuldade de isolar o vírus da hepatite. "Vi muita gente querendo rasgar o diploma."

Posteriormente, o grupo de Rice constatou que o vírus, de fato, era o responsável pela infecção e o desenvolvimento da doença em humanos, levando ao desenvolvimento de testes e tratamentos. "Não vemos casos de transmissão de hepatite C pelo sangue desde 1997", disse Alter. "Atualmente, podemos curar virtualmente todo mundo que é diagnosticado. Com isso, é possível que consigamos erradicar a doença ainda na próxima década, como espera a OMS."

Coronavírus. Alter e Rice estão trabalhando atualmente na pesquisa do coronavírus. Houghton tenta desenvolver uma vacina contra a hepatite C e espera começar os testes clínicos já no ano que vem, nos EUA, na Alemanha e na Itália. Pela primeira vez desde 1944, a cerimônia de premiação física do Prêmio Nobel, em 10 de dezembro, foi cancelada, por causa da pandemia de covid-19. Será substituída por um evento online, no qual os laureados receberão os prêmios em seu país de residência. Uma cerimônia ainda está marcada em Oslo para o Prêmio Nobel da Paz, mas reduzida ao mínimo.

O tradicional banquete dos premiados, celebrado todo ano em dezembro em Estocolmo, na Suécia, também foi cancelado.  O banquete havia sido cancelado anteriormente durante as duas Guerras Mundiais. Também não ocorreu em 1907, 1924 e 1956.

Os três cientistas vão dividir o prêmio de 10 milhões de coroas suecas (cerca de R$ 6,2 milhões). O prêmio de Medicina anunciado ontem é o primeiro de seis que serão revelados ao longo desta semana. Os demais são Física, Química, Literatura, Paz e Economia. / COM AGÊNCIAS  INTERNACIONAIS 

Reconhecimento

"Pela primeira vez na história, a doença pode ser curada, aumentando as chances de erradicação do vírus da hepatite C no mundo."

COMITÊ DO NOBEL

"O que precisamos agora é da vontade política de erradicar a doença."

Harvey J. Alter

PREMIADO

"Hoje, tomamos como certo que, se recebermos uma transfusão de sangue, não vamos ficar doentes. Mas não era assim antes de podermos testar todos os estoques de sangue."

Charles M. Rice

PREMIADO

OS GANHADORES

• Harvey J. Alter

Nasceu em 1935 em Nova York. Ele se formou em Medicina pela Escola de Medicina da Universidade de Rochester. Em 1961, ingressou nos Institutos Nacionais de Saúde (NIH). Ele também passou vários anos na Georgetown University, antes de retornar as NIH em 1969 para ingressar no Departamento de Medicina de Transfusão do Centro Clínico como pesquisador sênior.

• Michael Houghton

Nasceu no Reino Unido. Ele recebeu seu PHD em 1977 pelo King's College London. Depois se mudou para a Universidade de Alberta em 2010 e atualmente é professor de Virologia da universidade, onde também atua como diretor do Instituto de Virologia Aplicada.

• Charles M. Rice

Nasceu em 1952 em Sacramento. Ele recebeu seu PHD em 1981 do Instituto de Tecnologia da Califórnia. Ele estabeleceu seu grupo de pesquisa na Escola de Medicina da Universidade de Washington, em St Louis, em 1986, e tornou-se professor titular em 1995. Desde 2001, ele é professor na Universidade Rockefeller, em Nova York. No período de 2001a 2018 foi o diretor científico e executivo do Centro para o Estudo da Hepatite C na Universidade Rockefeller, onde permanece ativo.