O globo, n. 31928, 05/01/2021. Sociedade, p. 6

 

Viagem proibida

Paula Ferreira

Renato Grandelle

05/01/2021

 

 

Índia veta exportação de vacina para o Brasil, que fica sem dados necessários a uso emergencial

 Dois milhões de doses da vacina da Universidade de Oxford/AstraZeneca, que tiveram a importação autorizada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no dia 31 de dezembro, não viajarão mais ao Brasil. A remessa viria do instituto indiano Serum, mas o governo do país asiático proibiu a exportação de imunizantes antes do atendimento a toda a população nacional em grau de risco, um processo que duraria pelo menos dois meses.

O pedido de importação das doses tinha como objetivo acelerar o início da imunização no Brasil, uma vez que o produto fosse aprovado pela Anvisa. Ontem, no entanto, a agência afirmou que seu aval depende de informações que ainda não foram fornecidas pelo Serum, como a certificação de boas práticas de fabricação do imunizante.

A falta de dados do instituto indiano pode interferir no prazo estimado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), parceira brasileira da Universidade de Oxford/AstraZeneca, para solicitar autorização de uso emergencial da vacina junto à Anvisa. A expectativa é que a Fiocruz formalize esse pedido ainda nesta semana.

A Anvisa divulgou ontem uma nota reforçando que as doses da vacina de Oxford, provenientes da Índia, deverão seguir os mesmos parâmetros da que foi aprovada no Reino Unido para que obtenham o seu aval. Para isso, é preciso saber se os métodos e material de produção são os mesmos. Caso contrário, seria necessário descrever o impacto das mudanças no modo como o imunizante cumpre funções como o desenvolvimento de anticorpos contra o coronavírus. Essas informações, segundo a Fiocruz, virão da AstraZeneca e do Instituto Serum.

Mesmo sem doses para dar início ao uso emergencial, a Fiocruz afirmou, em comunicado, que seguirá estudando “normalmente e em paralelo” o registro definitivo da vacina por meio do processo de avaliação continuada. O pedido de registro definitivo do imunizante de Oxford continua previsto para ocorrer até 15 de janeiro.

O Instituto Serum é o maior fabricante mundial de imunizantes. Em entrevista à Associated Press, o presidente-executivo da companhia, Adar Poonawalla, anunciou que as primeiras 100 milhões de doses de suas vacinas contra o coronavírus serão vendidas, a US$ 2,70 cada, ao governo indiano. Depois, poderão ser vendidas ao mercado privado, o que seria feito a um preço até cinco vezes maior.

De acordo com Poonawalla, o Serum planejava fornecer, até dezembro de 2021, de 200 milhões a 300 milhões de doses de vacinas contra a Covid-19 ao consórcio global Covax, coordenado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), cujo objetivo é agilizar a distribuição de imunizantes para diversos países. O Brasil participa do acordo. O dirigente, porém, não sabe se poderá disponibilizar o contingente, já que também precisará atender ao mercado indiano.

Procurada pelo GLOBO para comentar as restrições impostas pelo governo indiano, a AstraZeneca afirmou que “esse processo está sendo liderado pela Fiocruz”, e que acompanha os desdobramentos “sem nenhuma atuação direta”. A Fiocruz, por sua vez, informou que as negociações para a importação das doses estão a cargo do Ministério das Relações Exteriores.

O Itamaraty afirmou, em nota, que as autoridades sanitárias do Brasil e da Índia estão em contato para viabilizar a importação da vacina: “Como ocorreu em outras ocasiões, a Embaixada do Brasil em Nova Déli está facilitando o diálogo entre as partes para a pronta conclusão das negociações”.

As doses que viriam para o Brasil não fazem parte do contrato assinado no ano passado entre a AstraZeneca e o governo federal, que permanece sem alterações. O documento prevê a compra de 100,4 milhões de doses de insumo farmacêutico ativo da vacina, além de uma licença à Fiocruz para a produção, distribuição e comercialização do imunizante. A expectativa é que sejam entregues 15 milhões de doses em janeiro, 15 milhões em fevereiro e o restante até julho de 2021.

Pressão política

O primeiro-ministro indiano, o ultranacionalista Narendra Modi, esteve à frente da aprovação de uso emergencial, divulgada ontem, da vacina Covaxin, a primeira produzida no país, em uma parceria do governo com um laboratório particular. Parte da comunidade científica e políticos de oposição protestaram contra a autorização dada ao imunizante, já que sua taxa de eficácia, bem como potenciais efeitos colaterais, ainda são desconhecidos.

— É um imunizante cuja fase três de testes ainda está no início e lida com poucos voluntários — analisa Flávio Guimarães da Fonseca, virologista do Centro de Tecnologia de Vacinas e pesquisador do Departamento de Microbiologia da UFMG. — Há cada vez mais dificuldades em fazer avaliações técnicas dos imunizantes, já que estão sendo desenvolvidos de um modo muito veloz. Mas o contexto indiano já mostra, em uma análise mais ampla, como o Brasil está ficando para trás. Investimos muito na vacina de Oxford, que perdeu espaço para suas concorrentes diante de erros registrados em testes.

Pesquisador da Escola Paulista de Medicina da Unifesp, Gabriel Maisonnave avalia que o ritmo de imunização em todos os países está muito lento, o que pode atrasar ainda mais a chegada de vacinas ao Brasil:

— Somos um grande campo de teste para a AstraZeneca, a CoronaVac e a Janssen (vacina desenvolvida pela Johnson & Johnson), mas suas fabricantes se queixam da burocracia do governo e de sua falta de iniciativa para fazer aquisições de produtos em larga escala.

Uma comitiva da Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas (ABCVAC) viajou ontem a e Hyderabad, no Sul da Índia, para conhecer a fábrica da Bharat Biotrech, empresa que está desenvolvendo a Covaxin. A entidade articula a compra de 5 milhões de doses, que devem chegar ao mercado brasileiro em março, “a depender dos trâmites das agências reguladoras”, como a Anvisa.