O globo, n. 31931, 08/01/2021. Sociedade, p. 8

 

A face do fracasso

Ana Lucia Azevedo

08/01/2021

 

 

Ao custo das 200 mil mortes da Covid-19 oficialmente registradas, o Brasil registrou o nome como um dos protagonistas da história da pandemia, um dos piores momentos já atravessados ​​pela humanidade. É brasileira a cara do fracasso contra o coronavírus. Sem testes em massa, sem distanciamento social e sem vacina, o país, outrora orgulhoso de seu programa de vacinação, superou as projeções mais pessimistas e tornou-se o que os cientistas chamam de pária internacional da saúde pública.

O país amarga o segundo maior número de mortes no planeta, inferior apenas aos EUA, com uma população 50% maior e igualmente desprovida de política nacional contra a pandemia. Ontem, depois que o país atingiu a marca de 200 mil mortes, o presidente Jair Bolsonaro disse:

- Agente se arrepende, a vida em massa continua.

Para o professor de Epidemiologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Roberto Medronho, "nos tornamos párias internacionais da Saúde Pública":

- Duzentas mil mortes são o resultado de uma crueldade indescritível. A história pode ser diferente. O Brasil foi referência em saúde pública. Isso foi jogado fora. Uma política negacionista, falta de coordenação nacional e medidas contraditórias, bem como a falta de empatia, colocaram-nos onde estamos. O SUS salvou muita gente, mas não tem milagre.

Enquanto o resto do mundo começou 2021 contando os vacinados, o Brasil, em termos concretos, só precisa somar novos doentes e mortos. O Andprojeções Sindicou que as mortes podem chegar a 300 mil em abril, se nada for feito, alerta o pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto Domingos Alves, do portal Covid-19 Brasil. Se a promessa de vacinação em fevereiro se concretizar, ainda assim, diz ele, os Mortos serão pelo menos 230 mil:

—Antes que comece a vacinação, teremos problemas para enterrar os mortos e colapso da rede de saúde porque não adotamos medidas de distanciamento e testagem.

Segundo Alves, dez estados (RJ, SP, MG, ES, PR, SC, RS, MS, PE, BA) estão com a média móvel dos casos superior à da primeira onda. Nesses locais, as projeções indicam colapso do sistema de saúde até o final da próxima semana.

A marca de 200 mil mortes superou o pior cenário estimado pelo Ministério da Saúde no início da pandemia. Na época, temia-se que os mortos chegassem a 180 mil.

- Estamos em uma matança. E as perspectivas não são animadoras. As aglomerações não têm sido combatidas como deveriam, o presidente continua a desprezar as vacinas, não dá o exemplo. A falta de planejamento é de um amadorismo que impressiona - diz Medronho.

DESIGUALDADE PROFUNDA

O presidente da Academia Nacional de Medicina (ANM), Rubens Belfort Jr., diz que será um ano difícil:

- Se 2020 foi inesperadamente terrível, 2021 será previsivelmente trágico. Se começarmos a vacinar em fevereiro, significa que em junho estaremos no inferno. Quem puder vai se vacinar na Europa, as selites estão dispostas a apagar tudo. Mas a maioria da população não terá como se proteger.

Medronho considera que a divisão de grupos instituída pelo Ministério da Saúde deix adefora oque, aseu ver, é o maior grupo de risco: os pobres, especialmente os negros.

- Ser pobre é um dos principais fatores de risco para morrer por Covid-19 no Brasil. E no Brasil ser pobre quase sempre é ser negro. O coronavírus destruiu e aprofundou nossa imensa desigualdade - destaca Medronho.

Rubens Belfort lamenta a falta de transparência e ações concretas da Anvisa por parte do Congresso durante a pandemia:

- O presidente deu todo o sinai serrado, virou uma caricatura. É muito fácil culpar apenas ele. O Congresso não fez nada, a omissão de políticos é enorme. Virámos os párias desta pandemia também porque as nossas elites não reagiram Alt e e a classificação política foi alienada - sublinha o presidente da ANM.

Segundo ele, numa época em que os hospitais e mortuários do resto do Brasil são como os de Manaus, mergulhados no caos, talvez se reflita que milhares de mortes poderiam ser evitadas.

A sanitarista Ligia Bahia, professora da UFRJ, lembra que a multidão de mortos contrasta com o vazio de estratégias concretas. Não está claro o número real de doses que o Brasil terá nema data quando começará a vacinar, diz ele:

- A única coisa que o abemo sabe é que não temos e não teremos em breve as 420 milhões de doses de que precisamos para vacinar todos os brasileiros. Até o final de janeiro teremos vacinas para políticos posarem para fotos. Nós nos tornamos párias da saúde pública por causa dessa absoluta falta de estratégia. O Brasil tem um nome sujo na história.

A pneumologista e pesquisadora da Fiocruz Margareth Dalcolmo diz que nunca quis tanto não ter acertado:

- Em dezembro, eu disse que este seria o janeiro mais triste da nossa história. Mas eu realmente queria estar errado. Infelizmente, não foi assim.

Os motivos de esperança para Dalcolmo são as vacinas, o reconhecimento e a participação da ciência brasileira e o surgimento do que ela chama de voluntariado de qualidade.

- Existem grupos de empresários interessados ​​em ajudar, temos que fortalecer essa rede de voluntários. O governo não planejou como deveria e todo o mundo parece ter pensado antes em comprar vacinas. Poderíamos estar escrevendo uma história diferente.