Valor econômico, v. 21, n. 5184, 08/02/2021. Brasil, p. 2

 

Patrocinador da paz Brasil-Argentina, embaixador vive resgate político

Daniel Rittner

08/02/2021

 

 

Daniel Scioli conseguiu, em 6 meses, distensionar as relações entre os 2 países e pacificar a relação com família Bolsonaro

No dia 13 de janeiro, quarta-feira abafada de um verão com menos chuva do que o habitual em Brasília, o embaixador da Argentina, Daniel Scioli subiu ao terceiro andar do Palácio do Planalto para uma audiência com o almirante Flávio Rocha, secretário de Assuntos Estratégicos do governo Jair Bolsonaro, em que foi expressar preocupação com a abertura do mercado brasileiro de trigo para fornecedores de fora do Mercosul.

Rocha mexia insistentemente no celular. Depois de alguns minutos, o almirante interrompeu a conversa e levantou-se. Pediu que Scioli o acompanhasse. A menos de dez metros dali, abriu a porta do gabinete presidencial.

“Feliz aniversário, meu amigo”, disse Bolsonaro, que fez questão de abrir espaço na agenda para cumprimentá-lo pela data. Scioli saiu do Planalto com três presentes: uma garrafa (agora já consumida) de cachaça, a promessa de que o Brasil não diminuirá as compras de trigo do país vizinho e o aceno de que Bolsonaro irá finalmente reunir-se em Foz do Iguaçu com o argentino, Alberto Fernández, em 26 de março, para comemorar os 30 anos do Mercosul.

Conhecido como peronista moderado e de estilo conciliador, sem nenhuma experiência prévia no mundo diplomático, Scioli conseguiu, em seis meses como embaixador, o que parecia impossível quando desembarcou no Cerrado em plena pandemia: distensionar as relações Brasil-Argentina e pacificar a família Bolsonaro, que atacava o progressista Fernández como parte “daquela turminha do Foro de São Paulo”.

Com isso, acabou dando “uma aula de diplomacia e pragmatismo ao Instituto Rio Branco”, conforme afirma um funcionário do Itamaraty crítico da gestão atual.

Cabe lembrar o estado das relações antes da chegada de Scioli. Bolsonaro dizia que o Rio Grande do Sul seria uma “nova Roraima” por causa de refugiados argentinos fugindo do caos econômico. O chanceler Ernesto Araújo chamou a vitória de Fernández de triunfo das “forças do mal”. Os dois chefes de Estado jamais haviam se falado. E o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) retuitou mensagem com duas fotos lado a lado: ele ostentando um fuzil e Estanislao, filho do presidente argentino que faz cosplay e é drag queen, vestido como o personagem Pikachu, do desenho “Pokémon”.

“O clima mudou completamente”, disse Scioli, sem esconder o ar de satisfação. Dez dias depois de sua visita ao Planalto, Flávio Rocha - um dos principais conselheiros de política externa de Bolsonaro - foi a Buenos Aires. Reuniu-se com vários ministros e jantou com Fernández em Olivos, residência oficial dos presidentes argentinos.

Na volta, o embaixador abriu sua casa à beira do Lago Paranoá e recebeu Eduardo Bolsonaro para um “assado” e vinho. Tudo na maior cordialidade. “Almoço de domingo em família”, postou, nas redes sociais, o filho 03 do presidente, agradecendo Gisela Berger, esposa de Scioli, e Francesca, sua filha de três anos, pela acolhida.

Em meio às múltiplas frentes de mal-estar abertas pelo Brasil no exterior, que vão da China à Alemanha, de Emmanuel Macron a Joe Biden, os últimos gestos de apaziguamento com a Argentina tiveram pouca repercussão por aqui. A visibilidade do outro lado da fronteira, porém, é muito maior. Seja porque o Brasil é o mercado que mais recebe exportações argentinas, seja porque não há tantos inimigos ideológicos no mundo, ou simplesmente porque a presença do ex-presidenciável numa das embaixadas mais importantes do país chama a atenção da mídia local.

Deriva de tanta exposição, não é raro surgir a pergunta: Scioli poderia repetir sua candidatura de seis anos atrás, quando perdeu para Mauricio Macri no segundo turno, e tentar novamente a Casa Rosada? Para auxiliares de Bolsonaro, que não se caracterizam exatamente por terem acertado previsões eleitorais em outros países, é com isso que sonha o ex-vice de Néstor Kirchner (2003-2007) e ex-governador da Província de Buenos Aires (2007-2015). “Ele nem esconde esse desejo”, opina um assessor com gabinete no Planalto.

Para o cientista político argentino Marcos Novaro, pesquisador do Conicet (um dos principais institutos de investigação científica do país), trata-se de uma possibilidade remota. Embora seja quase consenso que Fernández não pleiteará a reeleição, Novaro vê a história de Scioli mais como um resgate político. Lembra que sua imagem, após a corrida fracassada pela Casa Rosada, ficou muito desgastada e ele encolheu no peronismo. O macrismo conseguiu disseminar críticas pesadas sobre o desempenho de sua atuação em temas como educação, infraestrutura e segurança na Grande Buenos Aires.

“Até que veio Alberto Fernández, valorizando peronistas de um estilo mais equilibrado. É uma gestão formada por sobreviventes políticos, mas agora há um avanço progressivo do kirchnerismo duro sobre o governo”, observa o cientista político. “Scioli entrega ao presidente o que ele precisa: fotos, para consumo doméstico, a fim de dizer que estão conseguindo normalizar o relacionamento com o Brasil de Bolsonaro. E é assim que se esforça para aparecer no noticiário argentino. Ele pode substituir eventualmente o chanceler atual [Felipe Solá], que está enfraquecido, mas não acho que sonhe em regressar à política eleitoral.”

Questionado sobre suas pretensões para 2023, Scioli garante estar totalmente focado em suas atividades como embaixador e “nada mais”. Seu ritmo de trabalho, de fato, é intenso. Desde a chegada, visitou nove Estados e esteve com quase todos os ministros. Faltam apenas Paulo Guedes (Economia), Ricardo Salles (Meio Ambiente) e Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos). Pegou gosto por abacaxi pérola, toma até quatro latas de guaraná por dia, adora futebol. Nem pensa em adotar um segundo time no Brasil. É Boca Juniors onde quer que esteja e resume: “Las pasiones no cambian”.