Valor econômico, v. 21, n. 5184, 08/02/2021. Brasil, p. A3

 

Brasil precisa de um pacto amplo para superar desigualdade, diz historiadora

Anaïs Fernandes

08/02/2021

 

 

Para Wania Sant’Anna, desafio de vencer o racismo e o preconceito é “enorme”

O mercado de trabalho, o sistema de Justiça e a educação têm se mostrado áreas que reproduzem o racismo no Brasil em grau elevado, avaliou Wania Sant’Anna, historiadora e pesquisadora de relações de gênero e étnico/raciais. “É Chernobil puro”, disse ela na Live do Valor de sexta-feira, em uma alusão ao desastre nuclear na União Soviética nos anos 1980. O Brasil precisa, segundo Wania, de um amplo pacto, incluindo políticos e elites empresariais, para discutir e enfrentar a desigualdade no país.

Ser antirracista não é “questão de etiqueta social”, disse Wania. Ela citou Samuel Vida, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), para alertar que existe, hoje, uma banalização do que é a luta antirracista. “Ser antirracista é entender como estruturas de discriminação operam na sociedade brasileira, e elas operam de forma muito objetiva.”

O Brasil tem o “desafio enorme” de enfrentar o racismo, a discriminação racial e o preconceito, disse Wania. É nisso que se concentra a atuação do movimento negro no país, como na Coalizão Negra por Direitos, que reúne 200 grupos e lançou, em 2020, o manifesto “Enquanto houver racismo, não haverá democracia”. Segundo Wania, a democracia brasileira e as forças políticas precisam encontrar formas de compreender como o racismo coloca a maioria da população do país em vulnerabilidade e como fazer para que as instituições mudem padrões de atitudes.

Como historiadora, Wania reforçou a importância de recuperar a história do Brasil “para entender as estruturas de classe e as dimensões do racismo”. A transição de 1888 para 1889, com a abolição da escravatura e a passagem da monarquia à República, foi marcada pelo pensamento racista, criando um “mal de origem” no projeto republicano brasileiro, disse ela.

A política de imigração é, segundo Wania, um exemplo disso. Ao mesmo tempo em que a sociedade bloqueou o acesso da população negra recém-liberta ao mercado de trabalho, o país organizou bem suas leis de imigração. “A elite imaginava que uma forma de branquear a população brasileira era trazendo imigrantes europeus”, disse a historiadora. “A expectativa sobre essa parcela da população [negra] era que ela fosse desaparecer.”

Wania observou que a situação dos negros no mercado de trabalho brasileiro hoje não é tão diferente da existente no fim do século XIX. Essa população ainda concentra elevados índices de desemprego, subempregos, informalidade e diferenças salariais. O discurso contra políticas afirmativas parte de uma ideia de que o mercado de trabalho está funcionando bem e pessoas negras, ao ingressarem nele, prejudicariam operações, mas o problema, disse Wania, é que o mercado de trabalho no Brasil já é disfuncional. “Não está funcionando bem porque essa parcela da população [negra] não está dentro.”

A discriminação da população negra - e também a violência sistemática - precisa ser tratada do ponto de vista dos direitos humanos, mas existe também uma dimensão importante para as relações econômicas, disse Wania. “Nós precisamos ter um pacto das forças democráticas, partidos políticos, sindicatos, associações de classe, elite empresarial. Não vamos levar o país a lugar nenhum dessa forma”, afirmou.

Diferentemente das acusações de que o movimento negro quer “dividir” o país, o objetivo desses grupos é trazer o racismo para o centro do debate por este ser um tema essencial na constituição harmônica da sociedade brasileira, segundo Wania. “Isso aqui é um território, tratando de ser um país, mas as organizações do movimento negro estão interessadas que isso aqui se transforme em uma nação.”