O Estado de São Paulo, n.46376, 07/10/2020. Política, p.A4

 

Universidade nega dar pós que Marques diz ter feito

Patrik Camporez

Breno Pires

07/10/2020

 

 

Judiciário. Instituição espanhola afirma que indicado ao STF por Bolsonaro fez apenas um curso de cinco dias; ele possui dois pós-doutorados, mas concluiu doutorado há 11 dias

O currículo acadêmico apresentado pelo desembargador Kassio Nunes Marques, indicado do presidente Jair Bolsonaro ao Supremo Tribunal Federal (STF), traz um curso de pós-graduação que não é confirmado pela Universidad de La Coruña, na Espanha. A informação foi antecipada ontem pelo estadão.com.br. Nos últimos dias, a reportagem consultou universidades citadas no currículo apresentado por Marques sobre os cursos que ele diz ter feito.

No documento que enviou ao Tribunal Regional Federal da 1.ª Região (TRF-1), publicado no site da Corte, Marques cita que concluiu pós-graduação em "Contratación Pública", pela Universidad de La Coruña. A instituição, porém, informou que não oferece nenhuma pós-graduação deste curso. "Informamos que a Universidade de La Coruña não ministrou nenhum curso de pós-graduação com o nome de Postgrado en Contratación Pública", declarou a universidade, em resposta enviada ao Estadão.

Ao ser questionada diretamente se Marques realizou, ao menos, alguma atividade com o nome de "Contratación Pública", a universidade enviou uma cópia de um certificado de Marques, mostrando que o desembargador participou de um curso de cinco dias, entre 1.º e 5 de setembro de 2014. "Kassio Nunes Marques participou como ouvinte do I Curso Euro-brasileiro de Compras Públicas, organizado pela Universidade da Coruña, o Programa Ibero-americano de Doutorado de Direito Administrativo, a Rede Iberoamericana de Compras Públicas, o Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos de Infraestrutura e Grupo de Pesquisa de Direito Público Global, realizado na Escola de Direito da Corunha entre 1.º e 5 de setembro de 2014", informa o certificado.

Os questionamentos ao currículo já chegaram ao conhecimento de Marques. Na audiência virtual que teve ontem com sete senadores, ele comentou sobre os cursos de pós-graduação. Segundo um senador presente, o desembargador demonstrou preocupação, mas disse que, caso ocorresse polêmica, ele já tinha a justificativa. Marques, ainda de acordo com o parlamentar, chegou a mencionar que não há exigência de formação em Direito para assumir uma cadeira no STF, mas sim reputação ilibada.

O currículo do desembargador cita também dois cursos de pós-graduação feitos na Universidade de Salamanca, na Espanha: o primeiro, um doutorado em Direito, com especialização em Administração, Fazenda e Justiça; o segundo, um pós-doutorado em Direitos Humanos. Questionada pela reportagem, a universidade afirmou que as informações públicas de alunos estão disponíveis no site da instituição. O doutorado aparece na página da universidade – com um detalhe: a tese foi defendida há apenas 11 dias, em 25 de setembro. O pós-doutorado em Direitos Humanos, no entanto, não consta no banco de dados públicos da universidade.

Mais um curso de pós-doutorado consta no currículo, o de Direito Constitucional, pela Universidade de Messina (Universitá Degli Studi di Messina), na Itália. Questionada pela reportagem há quatro dias, a universidade não respondeu até a conclusão desta edição.

Pós-doutorados. Chama ainda a atenção o fato de Marques, com 48 anos de idade, ter concluído o doutorado apenas 11 dias atrás e já possuir dois pós-doutorados consumados. Ele também não faz uso de um instrumento regularmente utilizado para comprovar a experiência acadêmica, o currículo Lattes, ferramenta usada para atestar a formação acadêmica.

No Brasil, Marques informou, no currículo, que possui mais uma pós-graduação, em Ciências Jurídicas, pela Faculdade Maranhense - MA. A reportagem não localizou nenhuma instituição de ensino superior com esse nome que ofereça essa pós-graduação. A Faculdade Maranhense (FAM), contatada, informou não ter cursos relacionados ao Direito. A Faculdade Maranhense São José dos Cocais não respondeu se o curso é ofertado nem se Marques foi aluno da instituição.

Com relação à graduação do desembargador, em Direito, pela Universidade Federal do Piauí, a universidade confirmou que o curso foi finalizado em 1994 e disse que ele obteve Índice de Rendimento Acadêmico de 8.3704 pontos, "sem qualquer registro que desabone sua conduta acadêmica".

Cada uma dessas informações foi enviada, por meio de mensagens, a Marques, pedindo esclarecimentos sobre os cursos citados, ano e tempo de duração. Até a conclusão desta edição não houve resposta. O Estadão enviou ontem as mesmas perguntas ao TRF-1. A assessoria do tribunal informou que "não está autorizada a falar em nome do desembargador, que, por ora, não está respondendo às demandas da imprensa". O TRF declarou que, conforme informado pelo gabinete do magistrado, o currículo está disponível no portal do tribunal.

Requisito. Ontem, durante visita a senadores, Marques chegou a lembrar que a formação acadêmica não é fator decisório na escolha de ministro do Supremo. Ao comentar sua postura de defesa contra a corrupção, afirmou que "ficaria perplexo se fosse indicado qualquer cidadão, seja ele advogado, magistrado, que fosse contra o combate à corrupção". Não é preciso ser formado em Direito para ser ministro do STF. Além de reputação ilibada, o outro requisito – "notável saber jurídico" – pode ser alcançado por qualquer pessoa com qualquer formação.