Título: Incoerência e charme, faces de uma Brasília
Autor: Danyella Proença
Fonte: Jornal do Brasil, 27/02/2005, Brasília, p. D3

A obra criada por Oscar Niemeyer, influenciada por Le Corbusier, se destaca pela maciez e feminilidade dos traços

A menos de dois meses de completar 45 anos desde sua fundação, Brasília continua a intrigar turistas e seus próprios habitantes. A arquitetura monumental e audaciosa, os prédios formando esculturas modernas, tornam a cidade única. Mesmo para quem passa apressado pela obra, é impossível não perder os olhos por um segundo que seja nos traços de Oscar Niemeyer. O arquiteto revolucionou ao conceber uma cidade plasticamente bela, com edifícios valorizados por amplos espaços vazios. Tido para uns como grande nome da arquitetura moderna brasileira e para outros como inimigo das cidades funcionais, uma certeza Niemeyer deixa: a de ter projetado, ao lado de Lúcio Costa, uma cidade que encanta. E que, aos quase 45 anos, ainda convida a um mergulho em seus paradoxos.

Que Brasília é um grande mosaico, todos sabem. Erguida no coração do Planalto Central na metade do Século 20, a nova capital acabou por ganhar traços culturais de todo o Brasil. Mas a cidade também suscita lembranças de diversas partes do mundo, sobretudo do hemisfério norte. Reflete em seu projeto arquitetônico e urbanístico o vigor das teorias estéticas modernistas em voga na Europa da época.

A influência de Le Corbusier, considerado o pai da arquitetura moderna, sobre o jovem Niemeyer foi determinante para que Brasília ganhasse ares do Velho Continente. Edifícios da cidade carregam semelhanças com obras espalhadas Europa afora, sobretudo pela França.

Um estrangeiro que passeia pela Esplanada poderá, tranqüilamente, se sentir em um campo de marte, aqueles amplos espaços estratégicos construídos para a defesa militar. Poderá também se lembrar da Capela de Ronchamp, obra de Le Corbusier na França, ao olhar com atenção para a capela do Palácio da Alvorada. Mas o que faz de Brasília única é justamente a mistura entre a influência de Corbusier e a inventividade de Niemeyer? O arquiteto franco-suíço teve grande peso na formação de jovens arquitetos do mundo inteiro, mas em nenhum outro país foi assimilado de maneira tão intensa como no Brasil.

O primeiro contato de Niemeyer com Le Corbusier ocorreu em 1935, no Rio de Janeiro, quando os dois trabalharam juntos no projeto do Ministério da Educação e da Saúde. A partir daí, a ponte se estabeleceu de forma definitiva e o jovem Niemeyer lançou-se a experimentações plásticas com os edifícios. A pureza e poesia do traço teriam em Brasília, mais tarde, seu pleno espaço de criação. Se Niemeyer herdou do mestre a simplicidade sofisticada da forma, ele soube imprimir em Brasília, com autenticidade, todo o seu experimentalismo. Para o professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (UnB), Frederico Flósculo, Niemeyer esteve a frente de Le Corbusier em vários aspectos.

¿ A influência é inegável. Niemeyer herdou o purismo, a plasticidade e o jogo da forma sobre a luz, mas acabou criando coisas que nem Le Corbusier sonharia. Seu traço é mais macio e feminino ¿ acredita o professor, que cita a organicidade e o maior uso da linha curva como diferenças.

A influência de Le Corbusier não se restringiu à arquitetura. Como também era urbanista, acabou tendo forte peso sobre as criações de Lúcio Costa. O uso de pilotis e de largas avenidas valorizando os edifícios já eram preconizadas por Le Corbusier.

É preciso lembrar que o mestre foi acusado de pouco funcional. E, assim como ele, seus discípulos sofrem até hoje com o rótulo de terem idealizado uma cidade bela, porém pouco humana. A polêmica está longe de terminar, mas a charmosa incoerência de Brasília já é parte de sua identidade.