O Estado de São Paulo, n.46378, 09/10/2020. Política, p.A6

 

Para Celso, depoimento por escrito é “privilégio”

Breno Pires

09/10/2020

 

 

Em seu último voto, decano nega recurso que contesta oitiva presencial de Bolsonaro

Em seu último voto após 31 anos de atuação no Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Celso de Mello defendeu, ontem, o princípio de que todos são iguais perante a lei e rejeitou a concessão de "privilégios" ao reafirmar que o presidente Jair Bolsonaro deve ser interrogado presencialmente no inquérito em que é investigado por tentativa de interferência política na Polícia Federal.

Celso é o relator do caso aberto para investigar acusação feita em abril pelo então ministro da Justiça Sérgio Moro, para quem Bolsonaro agiu para proteger filhos e amigos de investigações. Decano do Supremo, Celso se aposenta na próxima terça-feira. Ele já havia determinado o depoimento presencial de Bolsonaro e, ontem, votou pela rejeição de recurso da Advocacia-Geral da União (AGU) que solicita a oitiva por escrito.

O magistrado também rebateu argumentos do procurador-geral da República, Augusto Aras, que apresentou parecer alinhado à defesa do presidente. O julgamento, porém, foi interrompido após o voto de Celso e não tem data para ser retomado. Pela lei, presidentes da República, da Câmara, do Senado e do STF têm direito a depor por escrito quando são testemunhas, não quando são investigados. Para a AGU e a PGR, porém, essas autoridades devem ter esse direito garantido mesmo quando são o alvo da investigação.

O decano discordou dessa avaliação, considerada por ele um "privilégio". "Investigado deve depor em dia, hora e local definidos pela Polícia", afirmou. A possibilidade oferecida a testemunhas, de acordo com Celso, não pode ser estendida a investigados, independentemente do cargo. Na sua avaliação, isso traria prejuízo à apuração, já que, durante o interrogatório presencial, é possível formular novas perguntas e identificar possíveis contradições nas respostas.

"A ideia de República traduz um valor essencial, exprime um dogma fundamental: o do primado da igualdade de todos perante as leis do Estado. Ninguém, absolutamente ninguém, tem legitimidade para transgredir e vilipendiar as leis e a Constituição de nosso país. Ninguém, absolutamente ninguém, está acima da autoridade do ordenamento jurídico do Estado", disse o decano.

Moro também é investigado no caso. Na segunda-feira, Celso prorrogou o inquérito por mais 30 dias. Indicado por Bolsonaro para ocupar a cadeira do magistrado, o desembargador Kassio Marques pode ser designado relator do inquérito do qual o presidente da República é alvo. Há, no entanto, uma discussão interna que pode resultar em sorteio da relatoria.

Precedente. A AGU e a PGR alegam que Bolsonaro deveria ter o mesmo direito concedido ao então presidente Michel Temer, que, por duas vezes, depôs por escrito enquanto era investigado. Celso, porém, lembrou que já houve determinação para depoimento presencial de um presidente do Senado investigado, Renan Calheiros (MDB-AL). "Não há pronunciamento colegiado na Suprema Corte sobre o tema agora em julgamento", disse.

Para Aras, se um investigado pode se negar a comparecer a um depoimento ou permanecer em silêncio, é contraditório determinar oitiva presencial. "Caso fosse possível admitir-se essa particular interpretação, deveria tal exegese (interpretação) ser estendida, por razões de equanimidade, a todos aqueles contra quem se praticam atos de persecução penal, uma vez que a todos os cidadãos é dado o direito ao silêncio, de não comparecer ao interrogatório, de não produzir provas contra si mesmo", rebateu Celso.