Título: Três anos após a maior moratória da história do capitalismo, Argentina ainda paga conta social
Autor: Marcia Carmo
Fonte: Jornal do Brasil, 27/02/2005, Economia & Negócios, p. A21

Os meninos e meninas maltrapilhos, de até menos de dez anos de idade, que fazem piruetas nos sinais de trânsito, em troca de alguns centavos, e os homens e mulheres que, ao cair da tarde, começam a catar papel em vários bairros da capital argentina são apenas algumas marcas da pior crise vivida pelo país, em dezembro de 2001. Naquela época, o coquetel moratória da dívida mais desvalorização do peso, temperado pelo turbilhão político, deixou uma herança que a Argentina até então desconhecia: a pobreza e a indigência de mais da metade da população. Na sexta-feira, o país encerrou a operação de troca de 153 títulos da dívida pública privada de US$ 81,8 bilhões, cujo calote havia sido decretado em 2001, por outros três novos bônus. O índice de adesão, superior às expectativas, deixou em alguns a sensação de que a moratória foi um bom negócio para o país. Os que investiram naqueles papéis vão receber a nova emissão de bônus com cerca de 68% de desconto. Quer dizer, o governo estará reduzindo aquela dívida a cerca de 30%. Mas esse resultado não significa, de jeito nenhum, na opinião de diferentes analistas argentinos, que o país saiu lucrando com o episódio. Pelo contrário.

- Vamos precisar de uma década de crescimento sustentável de 4,5% a 5% para incluir os novos pobres e os indigentes que surgiram com a moratória e a desvalorização do peso. Até o ano 2000, a Argentina não sabia o que era indigência e tinha cerca de 20% de pobres. Número que duplicou com a crise. Na época, os salários chegaram a perder 25% do seu valor real e nos últimos três anos o país também sofreu com a exclusão do mapa de investimentos. Acho que ainda vamos demorar muito para voltar a receber investimentos de longo prazo. Enfim, o preço da moratória saiu alto demais - avalia o economista Ernesto Kritz, da Sel Consultores, especializado em políticas sociais.

Kritz observou que, com a recuperação econômica de 2003 e de 2004, com crescimento na faixa de 8,8% ao ano, a Argentina já conseguiu reduzir os índices de pobreza de cerca de 56% para 40%, dos quais 16% são indigentes. Além disso, a perda real do salário também diminuiu, ficando, agora, em cerca de 15%. Mas ainda são números horrendos, comparados com a trajetória desse país que antes era tão orgulhoso de seus números igualitários.

Na sexta-feira, um dia considerado vitorioso para o governo federal, o Indec (Instituto Nacional de Estatísticas e Censos, equivalente ao IBGE) anunciou que o desemprego, que chegou a mais de 20%, está em 12,1%. Esse indicador gera polêmicas entre economistas, que questionam a decisão oficial de incluir, como trabalhadores ativos, aqueles que desde a fatídica crise de 2001 vivem com ajuda mensal de 150 pesos do próprio governo federal. Para os especialistas, se estes fossem contabilizados na legião de desempregados, o índice de desocupação ficaria em torno dos 16%.

Para Ernesto Kritz, somente agora a Argentina está voltando aos níveis econômicos de 1998, mas ainda longe de ter a renda per capita de antes.

- É verdade que a troca de papéis da dívida superou todas as expectativas, mas nossos desafios ainda são muitos de agora em diante. No regime de conversibilidade (quando o peso, na década de 90, era atrelado ao dólar, na cotação de um para um), a renda per capita era de US$ 9 mil. Tudo bem, estava um pouco inflada. Mas agora, mesmo depois da recuperação da economia, nos últimos dois anos, ainda é de US$ 3,3 mil. Outra prova de que a moratória e a desvalorização do peso deixaram graves conseqüências - completou o economista Fausto Sportono, da consultoria Delphos Investment.

Para ele e também para o economista Julio Pierkarz, da consultoria IBCP, além das questões sociais, os próximos desafios da Argentina serão: recuperar sua reputação de boa pagadora junto aos investidores internacionais, controlar a inflação - cuja projeção era entre 5% e 8% para o ano, mas que só em janeiro ficou acima de 1% - e retomar as negociações com o Fundo Monetário Internacional (FMI). O acordo entre a Argentina e o Fundo está suspenso desde agosto do ano passado, quando o ministro da Economia, Roberto Lavagna, sugeriu continuar pagando os vencimentos com o organismo, mas tendo a missão do FMI longe dos seus calcanhares.

- Agora, a expectativa é de que, passada a moratória, o FMI vai voltar a exigir, e ainda com mais força, que a Argentina realize logo as reformas estruturais pedidas há tempos, como a reforma das leis trabalhistas e da distribuição de impostos federais - disse Fausto.

Mas se a adesão à troca de títulos naquela que foi a maior moratória da história do capitalismo for confirmada em mais de 70%, incluindo argentinos e os investidores externos, como se esperava na sexta-feira, o presidente Néstor Kirchner e o ministro Lavagna poderão se sentir ainda mais fortalecidos para dizer um novo ''não'' ao FMI. Afinal, até o último momento, duvidava-se, nos bastidores do organismo multilateral de crédito, que tal operação pudesse ter resultado positivo, com 97% dos argentinos aceitando perder mais da metade dos seus investimentos - aí incluídos porteiros, aposentados e fundos de investimentos e de pensão.

Muitos aceitaram por pressão psicológica, já que o governo afirmou que não faria nova proposta, entenderam diferentes analistas.

Para que Kirchner e Lavagna sintam-se ainda mais fortalecidos, a Argentina conta hoje com US$ 20 bilhões de reservas no Banco Central e deve pagar apenas cerca de US$ 5,6 bilhões aos três organismos de crédito (FMI, BID e Banco Mundial) este ano. Mas como reconhecem Jorge Vasconcellos, da Fundação Mediterrânea, e Orlando Ferreres, da consutoria Ferreres e Associados, o maior desafio é reconquistar a confiança do mundo. Por isso, o acordo com o FMI deverá centralizar as atenções, passada a euforia do resultado da troca de títulos da dívida.

- O clima de otimismo em torno desta operação foi possível porque as taxas de juros dos Estados Unidos estão em baixa e porque países emergentes, especialmente o Brasil, sofreram queda no risco país. A Argentina teve, então, uma influência positiva, mas agora deverá avançar para perpetuar a recuperação e o crescimento e voltar a ser um país com imagem de sério como antes - disse Vasconcellos.

Os cartoneros (catadores de papel), os meninos e meninas que antes não sabiam o que é fazer malabarismos nos sinais de trânsito por uns trocados e os desempregados (que não são poucos desde o regime de conversibilidade, quando Carlos Menem era o presidente) agradecem. Segundo Julio Pierkarz, com a economia crescendo este ano a um ritmo de 7% ao ano e se o governo der os passos políticos esperados, os investimentos (hoje em 18% do PIB) voltarão e talvez a Argentina retorne logo ao circuito dos países confiáveis. Como ocorreu no ano passado com a Rússia.