Correio braziliense, n. 21059, 20/01/2021. Política, p. 4

 

Sem conexão ideológica

Jorge Vasconcellos 

20/01/2021

 

 

O vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, afirmou que a democracia perde quando as Forças Armadas são "indisciplinadas ou comprometidas com projetos ideológicos". Ele deu a declaração a repórteres, ontem, no Palácio do Planalto, ao comentar mais uma afirmação do presidente Jair Bolsonaro sobre a possibilidade de intervenção militar no país.

Na segunda-feira, o chefe do Executivo, durante conversa com apoiadores, em frente ao Palácio da Alvorada, criticava o governo da Venezuela quando afirmou que "quem decide se o povo vai viver uma democracia ou uma ditadura são as suas Forças Armadas". Ele acrescentou que o Brasil ainda tem liberdade, mas que "tudo pode mudar" se a população não reconhecer o valor dos militares. Mourão minimizou as declarações de Bolsonaro.

"O presidente já tocou nesse assunto várias vezes. É óbvio que, se você tiver Forças Armadas indisciplinadas ou comprometidas com projetos ideológicos, a democracia fica comprometida. Não é o caso aqui do Brasil, obviamente, mas nós temos a nossa vizinha Venezuela que vive uma situação dessas", disse o vice-presidente. "As Forças Armadas (do Brasil) são totalmente despolitizadas, não estão comprometidas com nenhum projeto ideológico. Elas estão comprometidas com a função delas", acrescentou.

Desde que tomou posse na Presidência, Bolsonaro fez várias ameaças veladas sobre uma possível intervenção militar, que teria o objetivo de restabelecer a "ordem" no país. Geralmente, ele lança mão desse expediente quando está sob forte pressão. Na segunda-feira, por exemplo, voltou a tratar do assunto um dia depois de ter amargado uma derrota política para o governador de São Paulo, João Doria, na disputa em torno da vacina contra a covid-19.

Manifestação
Um dos principais estudiosos das Forças Armadas do país, Alcides Costa Vaz, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) e presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (Abed), disse que "já passou da hora" de as lideranças militares manifestarem, de forma mais clara, seu compromisso com a Constituição.

"Acho que, diante de posicionamentos assim, do comandante em chefe, caberia às Forças Armadas, por meio de suas lideranças, no caso o ministro da Defesa, os comandantes de Força, fazerem um pronunciamento claro de reafirmação de compromisso com o ordenamento constitucional e com o Estado democrático de direito. Uma manifestação mais clara, dizendo: 'olha, nós não somos os guardiões de governo, nós somos Forças de Estado com missões constitucionalmente definidas, e dentre elas não está a de fazer intervenções na arena política'", afirmou Costa Vaz.

Para o professor, "isso são insinuações de golpismo, de golpe, que fazem parte de uma narrativa que o presidente vem sedimentando. Sem uma manifestação das Forças Armadas, fica uma grande interrogação sobre até que ponto há uma aquiescência, por parte delas, em relação a esse discurso".