O Estado de São Paulo, n.46381, 12/10/2020. Espaço Aberto, p.A2

 

Sem pronta regulamentação perderemos o novo Fundeb

Priscila Cruz

Lucas Hoogerbrugge

12/10/2020

 

 

Raras foram as ocasiões na História do Brasil em que o esforço para melhorar a educação ganhou o centro, a prioridade da nossa sociedade. Isso ocorreu entre julho e agosto de 2020, com a votação do novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), que povoou o noticiário, as redes sociais e a atenção de brasileiros e brasileiras que se preocupam com a nossa educação e entendem que ela é fundamental para o desenvolvimento do País. O Congresso Nacional parou para discutir o futuro das crianças e dos jovens, aprovando por quase unanimidade uma política pública mais justa e eficiente, que transformará as oportunidades de aprendizagem na próxima década. Foram quatro anos de intenso debate técnico até, enfim, chegarmos à promulgação da Emenda Constitucional (EC) n.º 108.

Engana-se quem pensa que o jogo terminou. Só poderemos comemorar mesmo o novo Fundeb e vislumbrar com nitidez seus impactos quando tivermos concluído e aprovado uma lei de regulamentação, ainda nos próximos meses. A EC n.º 108, a “emenda do Fundeb”, organiza a estrutura e os princípios da nova política educacional, mas a implementação de seus mecanismos depende de extenso detalhamento infraconstitucional. A esperança de uma educação melhor está, portanto, condicionada aos fundamentais detalhes que precisamos pactuar. Detalhes que se não forem bem formulados podem pôr tudo a perder.

A bem da verdade, há ainda grandes riscos. Se não aprovarmos a lei de regulamentação nos próximos meses deste ano, quase 1.500 municípios de alta vulnerabilidade e seus 7 milhões de alunos podem deixar de receber cerca de R$ 3 bilhões em 2021. Esses recursos são essenciais para equilibrar as vultosas perdas de arrecadação tributária registradas por conta da pandemia e para apoiar os investimentos necessários para assegurar que, quando chegar o momento adequado em cada cidade, o retorno às aulas presenciais não ponha em risco os professores, os estudantes e suas famílias.

Temos menos de três meses para aprovar a regulamentação, o que requer foco técnico, ampla concertação política e atitude solidária para a formação de rápidos consensos. E não podemos dar-nos ao luxo de uma lei malparada e sem qualidade: precisamos seguir o que está na Constituição da República e nos concentrar naquilo que é fundamental operacionalizar agora. Necessitamos, de forma urgente, estabelecer um grupo de trabalho para avaliar os projetos de regulamentação, com espaço para audiências públicas, e de rápida designação de relatoria equilibrada e conciliadora.

O Todos Pela Educação, que vem participando desse debate desde 2016, publicou no início de setembro a nota técnica Desafios da regulamentação do Novo Fundeb, apontando requisitos de funcionamento definidos pela própria emenda constitucional. A publicação aponta que precisaremos responder a diversas perguntas nesse curto espaço de tempo. Por exemplo: haverá prioridade para matrículas de crianças em situação de extrema pobreza? Quais critérios devem ser utilizados para avaliar a política? Como proceder caso uma reforma tributária altere a cesta de impostos do Fundeb? São dezenas de questionamentos como esses que precisarão ser avaliados. Cada resposta será uma decisão que impactará quem vai receber ou deixar de receber os recursos e até mesmo a viabilidade de operacionalização do Fundeb – ou seja, há muito a ser feito.

Não obstante os desafios da regulamentação, mais uma vez caberá ao Congresso Nacional o protagonismo das decisões a favor da qualidade e equidade da educação, ouvindo a sociedade civil organizada e os especialistas em educação e em finanças públicas. O governo federal, que em 1996 e 2006 capitaneou a edificação operacional das políticas de fundos educacionais, tem persistentemente se ausentado da discussão sobre o Fundeb, salvo uma ala mais técnica do governo, composta principalmente por funcionários de carreira. Desta vez, além de não haver confiança na União, existe o receio generalizado de eventuais manobras que possam prejudicar a expansão do Fundeb. Afinal, de maneira inconcebível, o que o governo tem feito é tentar desidratar esse fundo para financiar “marcas próprias”, querendo retirar R$ 8 bilhões da política.

A esperança está com nossos deputados, deputadas, senadores e senadoras. O Fundeb representa um novo capítulo na educação brasileira. Um capítulo de maior cooperação federativa e de equidade, caracterizado pela ampliação do investimento em quem mais precisa e pela maior eficiência na alocação de recursos. Mas isso só será realidade se tivermos aprovada uma boa lei de regulamentação no prazo adequado, capaz de tornar viável o funcionamento do Fundeb a partir de 1.º de janeiro de 2021. A tarefa exigirá a conciliação de dois atributos fundamentais neste momento: celeridade e zelo técnico, mesmo que em paralelo às eleições municipais. Sabemos com clareza: é nessa lei de regulamentação que definiremos o tamanho do salto de qualidade que a educação brasileira poderá dar.

RESPECTIVAMENTE, PRESIDENTE EXECUTIVA E LÍDER DE RELAÇÕES GOVERNAMENTAIS DO TODOS PELA EDUCAÇÃO