O Estado de São Paulo, n.46386, 17/10/2020. Política, p.A4

 

Fux age contra tática para escolher relator no STF

Breno Pires

17/10/2020

 

 

Judiciário. Resolução do presidente do Supremo tenta impedir prática de entrar comhabeas corpus e retirá-lo sucessivas vezes até cair com ministro que agrade a advogados

A libertação do traficante André do Rap pelo Supremo Tribunal Federal (STF) não serviu apenas para expor a falta de entendimento dos ministros sobre a manutenção da prisão preventiva de criminosos já condenados. O caso jogou luz em outra prática que vinha sendo adotada por advogados de defesa de alguns condenados: a apresentação de diversos habeas corpus, até conseguir que a ação caísse nas mãos do ministro que mais lhes agradasse. A manobra já era de conhecimento dos ministros, mas somente agora foi questionada publicamente.

No fim da sessão de anteontem, que definiu, por nove votos a um, que a prisão do líder do Primeiro Comando da Capital (PCC) deveria ser mantida, o presidente da Corte, Luiz Fux, publicou uma resolução sobre o assunto, com o objetivo de evitar tentativas de transformar o processo de escolha em uma “ciranda” de relatores do STF.

Coube ao ministro Gilmar Mendes dar o tom do problema e a necessidade de mudança nas regras. “Há uma norma no regimento que permite que se faça a desistência que houve neste habeas corpus (de André do Rap), sem que haja a prevenção (termo usado quando o relator de um caso passa a receber todos os demais processos associados ao primeiro). Precisa ser reformado, porque isso, com certeza, leva à possibilidade de fraude”, disse Gilmar.

A escolha do relator para casos levados ao STF ocorre por meio de um sorteio informatizado. Pela regra que estava em vigor até anteontem, o ministro sorteado recebia, automaticamente, todos os demais processos vinculados ao primeiro. É a chamada “prevenção”. O problema é que essa regra tinha diversas exceções. Deixava de existir, por exemplo, quando o autor do processo desistia da ação. Perdia seu efeito também se o relator ainda não tivesse tomado uma decisão sobre o pedido de liminar ou mérito da causa. A resolução de Fux acabou com todas essas exceções.

Agora, quando um relator é definido, ele passa a ser designado para todos os demais processos que tenham conexão com o inicial. A relatoria fica registrada e assim prossegue, mesmo que a defesa apresente um pedido de desistência da ação. O ministro sorteado pode até não ter apresentado qualquer decisão sobre o processo, mas suas digitais já estarão no caso.

Gilmar chegou a afirmar que os advogados do traficante André do Rap protocolaram sucessivos habeas corpus no tribunal, até que um deles caísse com o ministro Marco Aurélio Mello. É corrente a tese de que o magistrado teria um perfil “garantista”, isto é, um histórico de decisões focadas em preservar a liberdade de investigados. Marco Aurélio mandou soltar André do Rap.

“Quando a casa é arrombada, é que a gente coloca a porta. Estamos lidando com organizações criminosas com muito dinheiro para pagar bons advogados”, resumiu Gilmar. Segundo o ministro, a “clareira” não é ilegal, mas eticamente condenável e os ministros não têm como saber que essa prática está sendo usada.

Em seu voto sobre André do Rap, Gilmar disse que o habeas corpus deveria ter sido distribuído para a ministra Rosa Weber, a relatora dos processos da Operação Oversea. Foi no âmbito dessa investigação, sobre tráfico internacional de drogas no Porto de Santos, que André do Rap foi condenado.

Monocráticas. Além da mudança na regra do relator promovida por Fux, a polêmica em torno da soltura de André do Rap levantou o debate sobre decisões monocráticas, aquelas tomadas por apenas um ministro. Ontem, Fux disse que a Corte deveria tomar apenas decisões colegiadas. “O Supremo do futuro é um Supremo que sobreviverá sempre realizando apenas sessões plenárias. Será uma Corte em que a sua voz será unívoca”, afirmou o presidente do Supremo em seminário organizado pela TV Conjur. “Em breve, nós ‘desmonocratizaremos’ o Supremo Tribunal Federal para que as suas decisões sejam sempre colegiadas”, completou, sem dar maiores detalhes de como atingir esse objetivo.

André do Rap foi solto por liminar concedida por Marco Aurélio que, depois, foi anulada por Fux. O traficante está foragido.