Título: A estatização do terceiro setor
Autor: Martins, Ives Gandra
Fonte: Jornal do Brasil, 04/11/2008, Opinião, p. A9

professor de direito e escritor

No momento em que todos os constituintes brasileiros reconheceram o especial relevo do terceiro setor, outorgaram-lhe a imunidade, desoneração de tributos para motivar a sociedade a participar cada vez mais de suas atividades.

A imunidade é uma vedação absoluta ao poder de tributar. Por isso, quando autoridades governamentais declaram que a imunidade é uma "renúncia fiscal", demonstram elementar ignorância.

Só renuncia quem tem algo a renunciar. Ora, se a Constituição proíbe, veda, interdita qualquer tributação de impostos ou contribuições sobre a assistência social, inclusive saúde e educação, à evidência, o governo não renuncia a nada, pois não tem de que abrir mão.

A repetição, todavia, à exaustão, da ignorância governamental, em que o baixo conhecimento jurídico é acompanhado de alto poder de pressão sobre a mídia, termina por encontrar eco nos meios de comunicação. De tanto repetir as mesmas equivocadas expressões, um assunto científico termina por se tornar uma falsa "verdade jornalística".

Desta forma, porque o governo precisa aumentar a arrecadação, entidades de saúde e educação, que há décadas prestam serviços admiráveis ao país, estão tendo o reconhecimento de sua imunidade cancelado, com a lavratura de grotescos autos de infração que as tornarão inviáveis.

O argumento do governo é a necessidade de arrecadação. Mais importante que respeitar a desoneração constitucionalmente concedida a essas entidades para que possam suprir as deficiências do Estado na prestação de tão relevantes serviços é comprometer a qualidade do atendimento, ou mesmo inviabilizá-lo, em prol de aumentar a já insuportável carga tributária.

Em outras palavras, porque o moloque estatal consome quantidade cada vez maior de tributos, escolhe-se agora extorquir o terceiro setor, mesmo que à custa de sua inviabilização, transformando-se uma imunidade constitucional ¿ que é vedação absoluta ao poder de tributar, instituída na Carta da república ¿ em "renúncia fiscal", o que é impossível, pois quem não tem o poder de tributar, não pode a ele renunciar!!!!

Há quem diga que a campanha orquestrada contra o terceiro setor, que tantos serviços tem prestado ao país, mediante a organização de forças-tarefas e junção de esforços de vários setores da administração pública federal, tem o seu cerne na filosofia dos atuais detentores do poder. Em sua visão marxista da ação do Estado, não acreditam que possa a sociedade prestar tais serviços e que somente o Poder é que seria capaz de fazê-lo. Assim, a lavratura de autos de infração, contra a lei e a Constituição, em volume ciclópico e valores spielberguianos, permitiria aos novos áulicos governamentais assumir tais empreendimentos a custo zero. Com isso, eles ¿ que não concorreram com um único real do seu patrimônio para a instituição dessas entidades ¿ passariam a ser os seus diretos dirigentes e administradores! Tratar-se-ia, pois, de usar os instrumentos tributários, em manifesto desvio de finalidade, para inviabilizar e estatizar todo o terceiro setor, na linha das propostas dos ideólogos enquistados no poder.

Qualquer que seja o desiderato governamental ¿ maior arrecadação ou estatização ¿ o certo é que, por uma inacreditável desfiguração do princípio constitucional da imunidade, o terceiro setor, que sempre fez mais do que o governo pela saúde, assistência e educação, está sendo dramaticamente atingido.

A tudo isto, apesar de ter considerado de repercussão geral o exame do perfil jurídico da imunidade e sua regulação pela lei complementar, o Supremo Tribunal Federal assiste, reticente, a desestruturação do terceiro setor a passos acelerados.