Correio braziliense, n. 21066, 27/01/2021. Saúde, p. 11

 

"Histórico de atleta" não abranda a covid

Vilhena Soares 

27/01/2021

 

 

A prática regular de exercícios físicos gera uma série de benefícios ao organismo, como proteção a doenças crônicas e fortalecimento do sistema imune, mas essa rotina saudável não promove efeitos protetores em casos severos da covid-19. Essa foi a constatação de pesquisadores brasileiros, que analisaram um grupo de mais de 200 pacientes internados com a forma grave da enfermidade. Os especialistas não registraram melhor recuperação, durante o tratamento, como um menor tempo de internação, por exemplo, em pacientes mais ativos fisicamente. Os autores do estudo, publicado no repositório on-line de pesquisas científicas MedrXiv, têm como próximo passo investigar o comportamento do vírus no organismo de esportistas profissionais.

"O exercício físico pode evitar que uma pessoa sofra com doenças como diabetes e hipertensão, e alguns problemas infecciosos também. Com o início da pandemia, queríamos entender se essa atividade influencia no prognóstico da covid-19, ou seja, se era um fator que podia afetar positivamente a evolução clínica desses pacientes", explicou ao Correio Bruno Gualano, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e principal autor do estudo.

Gualano e sua equipe investigaram a rotina de 209 pacientes em estado grave, internados no Hospital das Clínicas (HC) da USP e no Hospital de Campanha do Ibirapuera. Os pesquisadores tiveram acesso ao histórico de atividades físicas desses doentes, obtidas por meio de um questionário. Como resultado, constataram que os indivíduos que tinham como hábito se exercitar regularmente antes da internação não vivenciaram um melhor enfrentamento da doença.

Alerta

"Analisamos tempo de permanência no hospital e em UTI, e também necessidade de ventilação. No fim, não encontramos diferença de progressão da enfermidade entre os pacientes graves, mais ou menos ativos fisicamente", detalhou Gualano. "É sempre importante deixar claro que exercícios físicos são importantes para a nossa saúde, mas nossa pesquisa é um sinal amarelo para a população que se exercita com regularidade e, por isso, pensa que pode estar totalmente protegida dessa doença", ressaltou o principal autor do estudo.

O professor da USP assinalou, ainda, que os dados verificados são complementares a uma pesquisa anterior, do Instituto do Coração (Incor). Nela, os investigadores avaliaram se a prática prévia de atividades físicas gerava efeitos positivos em pacientes com casos leves e moderados de covid-19. "As observações dos nossos colegas foram diferentes, eles constataram uma melhora no prognóstico da enfermidade em quem se exercitava anteriormente. Essa informação, em junção aos nossos resultados, leva-nos à conclusão de que a atividade física pode, eventualmente, ser considerada um bom preditor até certo estágio de gravidade da doença prevenindo complicações, o que não ocorre em casos mais críticos", explicou Gualano.

Em março do ano passado, no início da pandemia, o presidente Jair Bolsonaro fez uma declaração polêmica sobre o tema. Em pronunciamento, ele afirmou não se preocupar com a covid, pelo seu "histórico de atleta", enfatizando que, se fosse infectado, não teria mais do que "uma gripezinha ou resfriadinho". A declaração foi criticada por vários especialistas da área que ressaltaram não existir uma relação entre a realização de práticas físicas e o abrandamento da doença.

Para Eugênio Masson, médico intensivista do Hospital Anchieta, em Brasília, o estudo brasileiro confirma uma suspeita que já rondava a área médica e que, agora, pode ser defendida com mais ênfase. "O que já temos total certeza em relação a casos severos dessa doença é que as comorbidades agravam muito a recuperação dos pacientes. Mas já observamos também, dentro da UTI, que os indivíduos com uma forma mais grave de enfermidade sofrem muito para se recuperar, independentemente dos hábitos saudáveis que tinham antes. Esse estudo reforça as hipóteses que defendíamos", frisou.

Segundo o médico intensivista, os dados também servem como um alerta para que toda a população se mantenha ainda mais atenta às medidas de prevenção e evite, ao máximo, contrair a enfermidade. "Não devemos ter uma zona de conforto, achar que estamos protegidos da doença apenas por fazer atividades físicas, ou que vamos sofrer com um caso mais leve. Esses dados nos mostram que todos estamos em risco e que só o isolamento pode nos proteger agora. É preciso se prevenir", reforçou.

Nova avaliação

Agora, a equipe da USP iniciou novo estudo para avaliar a resposta imune e a evolução do novo coronavírus em atletas profissionais. "Trabalhamos com um grande grupo, chamado de coalizão Esporte-covid-19, que é formado por pesquisadores do Hospital das Clínicas, Hospital Israelita Albert Einstein e Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), entre outros", elencou Gualano.

Ele enfatizou que especialistas já sabem porque atletas profissionais se recuperam da enfermidade em pouco tempo, mas que o estudo pretende revelar mais detalhes relacionados ao comportamento do patógeno entre eles. "Pessoas que têm como profissão o esporte apresentam um tempo mais curto de internação por covid-19, além de casos mais leves da doença. Isso ocorre, provavelmente, devido ao quanto eles cuidam da saúde, sendo sua principal prioridade. É algo totalmente diferente de quem se exercita no dia a dia", distinguiu. "Queremos avaliar se podem ocorrer sequelas na recuperação dessas pessoas, como problemas cardíacos, por exemplo."

Essa nova fase da pesquisa tem como alvo 75 jogadores infectados e já recuperados, que passarão por uma severa bateria de exames. "Entender como esses indivíduos respondem a esse vírus pode também nos dar pistas fisiológicas importantes, que sirvam na prevenção de casos mais graves. A pesquisa tem o potencial de revelar até que ponto o estilo de vida interfere nos sintomas e nas sequelas da covid-19", afirmou Gualano.