O globo, n. 31935, 12/01/2021. Economia, p. 15

 

Ford sairá do Brasil

Henrique Gomes Batista

João Sorima Neto

Bruno Rosa

Manoel Ventura

Gustavo Maia

12/01/2021

 

 

Montadora vai demitir 5 mil empregados no país e na Argentina

 A Ford vai encerrar a fabricação de automóveis no Brasil, o que deve resultar na demissão de 5 mil empregados no país e na Argentina—a produção lá, no entanto, será mantida, assim como no Uruguai. A empresa citou como motivos um “ambiente econômico desfavorável” no Brasil, que foi agravado pela pandemia, algo apontado inclusive pela associação do setor, preocupada com a demora na vacinação.

O anúncio da montadora americana surpreendeu tanto políticos como o setor produtivo. A indústria automotiva puxa toda uma cadeia de fornecedores, ou seja, o fechamento dessas fábricas será um duro golpe para a produção industrial brasileira. No país desde 1919, a Ford já obteve R$ 20 bilhões em incentivos fiscais, segundo o colunista do GLOBO Lauro Jardim.

A montadora prevê impacto de aproximadamente US$ 4,1 bilhões em despesas não recorrentes, incluindo cerca de US$ 2,5 bilhões em 2020 e US$ 1,6 bilhão em 2021.

O setor automotivo há muito recebe benefícios fiscais. Somente as 20 maiores operações de empréstimos pelo BNDES à Ford somaram cerca de R$ 3,5 bilhões em linhas de financiamento desde 2002. Segundo levantamento do GLOBO, foram operações diversas, com foco em exportação, desenvolvimento de veículos e apoio a projetos sociais.

BNDES QUER EXPLICAÇÕES

O BNDES informou que ainda há duas operações ativas, por isso já procurou a Ford para pedir esclarecimentos. O banco disse ter ficado sabendo do fechamento das fábricas pela mídia. Estão em situação ativa empréstimos cujo valor contratado chega a R$ 335 milhões e se referem ao desenvolvimento de novos veículos e de projetos sociais. Em nota, o BNDES afirmou que os contratos “dispõem de cláusulas padrão relacionadas à manutenção do emprego”.

O presidente e diretor executivo da montadora, Jim Farley, afirmou em nota que a Ford está mudando “para um modelo de negócios enxuto e com poucos ativos.”

A produção será interrompida imediatamente em Camaçari (BA) e Taubaté (SP) no Brasil, com a fabricação de algumas peças continuando por alguns meses para sustentar os estoques para reposição. A unidade da Troller em Horizonte, no Ceará, vai operar até o quarto trimestre deste ano. As vendas de EcoSport, Ka e T4 continuarão até o fim dos estoques, depois serão suspensas.

A montadora vai manter sua sede para a América do Sul no Brasil. Os automóveis, no entanto, virão da Argentina, Uruguai e outros mercados. Permanecem as operações de suporte aos clientes em vendas, serviços e peças de reposição. Também serão mantidos o centro de desenvolvimento de produtos na Bahia e o campo de provas em Tatuí, no interior de São Paulo.

Em novembro, informou o IBGE na semana passada, o setor de veículos automotores, reboques e carrocerias cresceu 11,1% frente ao mês anterior, puxando o desempenho da indústria. A produção industrial como um todo teve alta de apenas 1,2% no período.

Também na semana passada, a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) disse estimar crescimento de 15% nas vendas de automóveis em 2021, com alta de 25% na produção. Mas apontou como desafios a elevada carga tributária e o enfrentamento da pandemia. Segundo a Anfavea, as montadoras estão dispostas a vacinar não só seus trabalhadores, como a população do entorno das fábricas.

Em nota, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) afirmou que a decisão da Ford é um sinal de alerta para o Congresso e as três esferas de governo “sobre a necessidade de aprovar, com urgência, medidas para a redução do Custo Brasil”. A CNI ressaltou que a reforma tributária é prioritária.

GOVERNADORES LAMENTAM

O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), lamentou a decisão da Ford. O governador da Bahia, Rui Costa (PT), também lamentou o anúncio, mas disse que criou um grupo de trabalho para atrair uma nova montadora para o estado. Ele atribuiu a decisão da Ford a uma onda de fechamento de empresas no país em meio à crise gerada pela pandemia e disse que o governo federal “não cuida da economia”.

Em nota, o Ministério da Economia afirmou que “a decisão da montadora destoa da forte recuperação observada na maioria dos setores da indústria no país, muitos já registrando resultados superiores ao período pré-crise.” A pasta disse ainda que “trabalha intensamente na redução do Custo Brasil”.

O vice-presidente Hamilton Mourão admitiu que a notícia não é boa e afirmou que a companhia poderia ter retardado a saída:

— Não é uma notícia boa. Eu acho que a Ford ganhou bastante dinheiro aqui no Brasil e me surpreende essa decisão que foi tomada aí pela empresa —disse. —Acho que ela poderia ter retardado isso. Até porque o nosso mercado consumidor  é muito maior do que outros aí.

Em uma rede social, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, afirmou que “o fechamento da Ford é uma demonstração da falta de credibilidade do governo brasileiro, de regras claras, de segurança jurídica e de um sistema tributário racional. O sistema que temos se tornou um manicômio nos últimos anos.” Ele disse esperar que a decisão da montadora sirva de alerta para que governo e Congresso avancem nas reformas.

O secretário especial de Comunicação Social do governo, Fábio Wajngarten, rebateu Maia: “A Ford mundial fechou fábricas no mundo porque vai focar sua produção em SUVs e picapes, mais rentáveis. Não tem nada a ver com a situação política, econômica e jurídica do Brasil. Quem falar o contrário, mente e quer holofotes.”

A Ford está reavaliando seus negócios em todo o mundo, inclusive na América do Sul, de modo a obter um ajuste de 8%. Mas, até agora, o único país do qual a montadora decidiu sair foi o Brasil.

‘NINGUÉM IMAGINAVA’

Raphael Galante, consultor da Oikonomia Consultoria Automotiva, diz que a decisão pegou o setor de surpresa, em especial os cerca de 350 concessionários da Ford, que se preparavam para o lançamento de novos produtos:

—Tinha gente fazendo investimento, adequando instalações, negócios entre os concessionários. Nunca, em hipótese alguma, ninguém imaginava isso.

Galante reconhece, porém, que a Ford foi pragmática:

—A Ford não estava em seu melhor momento. O Ecosport tem quase 20 anos. A empresa teve um grande problema com o câmbio automático, que estragou a imagem da marca no Brasil, e reduziu muito sua linha.

A empresa, que já esteve entre as líderes do mercado brasileiro, hoje disputa com Toyota e Renault a quinta posição no mercado brasileiro, liderado por GM, VW, Fiat e Hyundai.

— A montadora deixa de produzir no Brasil porque aqui não tem conteúdo tecnológico avançado — diz Antônio Jorge Martins, coordenador de cursos automotivos da Fundação Getulio Vargas (FGV).

A Ford tem 6.17 1funcionários no Brasil, sendo 1.652 em Taubaté, 4.059 na Bahia e 460 no Ceará. A montadora vai discutir com os sindicatos formas de mitigar os impactos do fim da produção no país. Em Taubaté, 830 funcionários serão demitidos, segundo o Sindicato dos Metalúrgicos.

No início de 2019, a Ford fechou sua fábrica de caminhões em São Bernardo do Campo (SP). Em dezembro, a Mercedes-Benz anunciou que não faria mais automóveis no país.