O globo, n. 31936, 13/01/2021. Mundo, p. 23

 

Fuga da responsabilidade

13/01/2021

 

 

Trump nega culpa por ataque ao Capitólio e diz que fala à multidão foi “apropriada”

Falando em público pela primeira vez desde a invasão do Capitólio, no último dia 6, o presidente Donald Trump negou qualquer responsabilidade pelo episódio e disse que o processo de impeachment iniciado pela Câmara dos Deputados está causando uma “raiva tremenda” em seus apoiadores. O tom inflamado do presidente acirra a preocupação com a segurança nos próximos dias, diante do temor de que os atos marcados por grupos pró-Trump terminem em violência.

— O impeachment é, na verdade, uma continuação da maior caça às bruxas da história da política — disse ele, pouco antes de embarcar em uma viagem para Alamo, cidade texana na fronteira com o México com forte significado histórico nos EUA, onde todos os defensores de um forte foram massacrados pelos mexicanos em uma batalha em 1836.

— É ridículo. É absolutamente ridículo. Esse impeachment está causando uma raiva tremenda e são vocês [seus opositores] que estão fazendo isso.

Trump não saía da Casa Branca desde que seus apoiadores invadiram o Capitólio, deixando um rastro de cinco mortos. Pouco antes da invasão, o presidente havia feito um discurso a seus seguidores, convocando-os a marchar até a a sede do Congresso e interromper a sessão que confirmaria a vitória de Joe Biden, a última etapa antes da posse. O presidente chegou a dizer que acompanharia a multidão, mas assistiu à invasão pela TV na Casa Branca.

‘ZERO RISCO PARA MIM’

A repórteres ontem, ele insistiu que sua fala à multidão foi “totalmente apropriada”, esquivando-se da culpa que lhe é quase universalmente atribuída. O comportamento tornou-o alvo não só de um inédito segundo processo de impeachment, como também de uma investigação do Departamento de Justiça: se for constatado que Trump agiu para incitar a invasão, o promotor responsável já indicou que o presidente pode ser alvo de uma denúncia formal.

— Vocês leram o meu discurso, e muitas pessoas o fizeram. Eu vi nos jornais, na mídia, na televisão, ele foi analisado, e as pessoas acharam que o que eu disse foi totalmente apropriado —afirmou Trump.

Entretanto, o discurso de pouco mais de uma hora que fez no dia 6 apontava para a direção contrária. Em um dado momento, Trump instou seus apoiadores a “lutar muito mais” contra as “pessoas ruins” e “demonstrar força” no Capitólio. Ele afirmou ainda que, quando há alegações de fraude, “há permissão para seguir regras muito diferentes”.

Além de insinuar uma carta branca à violência, a frase direcionava a raiva para figuras do Partido Republicano que haviam se comprometido a respeitar o voto popular e confirmar a vitória de Biden, como o vice-presidente Mike Pence. Trump chegou a insinuar a seus partidários que se aceitassem o triunfo democrata estariam pondo si mesmos em risco.

— Nós vamos lutar até o fim, e se vocês não o fizerem, nós não teremos mais um país —disse na ocasião.

Ontem, perguntado diretamente se tem planos de renunciar, diante da votação iminente do processo de impeachment pela Câmara e de seu isolamento cada vez maior, Trump disse apenas “não querer violência”.

Mais tarde, no discurso em Alamo, diante do muro instalado na fronteira com o México, Trump afirmou não temer a possibilidade de ser afastado através da 25ª Emenda da Constituição, que prevê a saída do presidente caso seu vice e metade do seu Gabinete o declarem incapaz de governar. Ontem, a Câmara de maioria democrata votaria à noite uma resolução instando Pence a liderar essa iniciativa, mas o próprio vice enviou antes uma carta à presidente da Casa, Nancy Pelosi, indicando que não o fará.

—A 25ª Emenda representa risco zero para mim — afirmou Trump, que almoçou na segunda com Pence.

Caso o vice-presidente não se pronuncie, a Câmara deve votar hoje a abertura processo de impeachment, sob acusação de “incitação à insurreição” contra a ordem democrática.

A decisão final cabe ao Senado e, se for condenado depois de deixar o cargo, no dia 20, Trump ainda assim perderá o direito de concorrer a cargos públicos, além do salário de ex-presidente.

Segundo o New York Times, Mitch MacConnell, líder republicano no Senado e antes um forte aliado de Trump, teria dito a assessores que o presidente cometeu crimes passíveis de impeachment. Na Câmara, três republicanos anunciaram que votarão pelo impeachment.

Em Alamo, Trump ainda sinalizou que pretende ocupar posição central na oposição a Biden, mas foi enigmático sobre como vai fazêlo, ainda mais sob a luz dos eventos da semana passada.

— Eu voltarei para assombrar Joe Biden e o governo Biden. Como diz aquela expressão, “cuidado com o que você deseja”.

 

CRÍTICAS A SEU BANIMENTO

Trump não fazia nenhuma declaração em público desde o último dia 8, quando foi banido do Twitter e do Facebook por incitar a violência — em um vídeo em que, sob pressão, pediu que os invasores do Capitólio fossem para casa, chegou a dizer que os “amava” e que eles eram “muito especiais”. Comentando o veto das redes, que o deixou sem seu principal megafone — no Twitter, ele tinha 88,7 milhões de seguidores —o presidente afirmou que as empresas do Vale do Silício cometeram “um erro catastrófico” e estão “dividindo o país”.

“Vamos andar até o Capitólio, e vamos encorajar nossos bravos senadores e deputados e deputadas (...) porque vocês nunca vão tomar de volta nosso país com fraqueza. Vocês têm de mostrar força, e vocês têm de ser fortes”

Donald Trump, no comício a seus apoiadores logo antes da invasão do Congresso no dia 6 Trump, ontem, negando culpa pelo ataque ao Capitólio

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Chefes militares condenam invasão do Congresso

13/01/2021

 

 

Declaração à tropa diz que 'qualquer ato para interromper o processo constitucional é contra a lei' e que liberdade de reunião não abona Violência

 O general mais graduado dos Estados Unidos, Mark Milley, e todos os outros cinco integrantes do Estado-Maior Conjunto — composto pelos chefes de cada Arma — divulgaram ontem uma mensagem dirigida aos militares condenando a invasão do Congresso em 6 de janeiro por apoiadores do presidente Donald Trump. Em uma rara manifestação conjunta, os chefes militares lembram toda a tropa de seu dever de obediência ao poder civil e à Constituição.

“A violenta rebelião em Washington em 6 de janeiro de 2021 foi um ataque direto ao Congresso dos EUA, ao edifício do Capitólio e ao nosso processo constitucional. Lamentamos as mortes dos dois policiais do Capitólio e de outras pessoas ligadas a esses eventos sem precedentes”, diz a carta, que, se refere a um segundo policial morto, um agente em serviço no  Congresso no dia da invasão que se suicidou no sábado.

A carta desaprova tacitamente as falsas alegações de Trump de que houve fraude eleitoral no pleito vencido pelo democrata Joe Biden.

CONTRA ESTADO DE DIREITO

Segundo a agência Reuters, ela foi divulgada após queixas de militares de que os líderes das Forças Armadas não haviam dado uma diretriz clara depois da invasão do Congresso para impedir a homologação da vitória de Joe Biden. O documento diz que “como membros do serviço, devemos incorporar os valores e ideais da nação. Apoiamos e defendemos a Constituição. Qualquer ato para interromper o processo constitucional não é apenas contra nossas tradições, valores e juramento, é contra a lei”.

O comunicado afirma ainda que “o povo americano confiou nas Forças Armadas dos Estados Unidos para protegê-lo e proteger nossa Constituição por quase 250 anos. Como temos feito ao longo de nossa História, os militares dos EUA obedecerão às ordens legais da liderança civil, apoiarão as autoridades civis para proteger vidas e propriedades, garantirão a segurança pública de acordo com a lei e permanecerão totalmente comprometidos com a proteção e defesa da Constituição dos Estados Unidos contra todos os inimigos, estrangeiros e internos”.

O documento acrescenta que os episódios dentro do Congresso são “incoerentes com o Estado de Direito. Os direitos de liberdade de expressão e reunião não conferem a ninguém o direito de recorrer à violência, sedição e insurreição”. A declaração termina afirmando que “em 20 de janeiro de 2021, de acordo com a Constituição, confirmada pelos estados e tribunais, e homologada pelo Congresso, tomará posse o presidente eleito Biden e se tornará nosso 46º comandante em chefe”.

“Aos nossos homens e mulheres destacados e em casa, salvaguardando o nosso país, fiquem prontos, mantenham os olhos no horizonte e permaneçam focados na missão. Honramos seu serviço contínuo na defesa de cada americano”, encerra a nota.