Título: Boas intenções protegem escândalo
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 13/11/2008, Opinião, p. A8

O governo escolheu o atalho mais fácil e tortuoso ao editar uma medida provisória que, na prática, anistia entidades filantrópicas ameaçadas de perder os benefícios de isenção fiscal. Com uma canetada, renovou automaticamente 2.274 certificados de entidades beneficentes ¿ inclusive e tenebrosamente aquelas que estão sob suspeita de fraudar o governo para obter ou renovar o título de filantropia. Parte das entidades agraciadas com a MP foi alvo da Polícia Federal: a Operação Fariseu, em março, desbaratou um esquema de pagamento de propina para garantir certificados. A medida provisória editada esta semana deve assegurar uma isenção de mais de R$ 2 bilhões às filantrópicas, calcula o Ministério Público Federal.

A cifra, por si eloqüente, pode atingir patamares ainda mais robustos, uma vez que existem outros 8.300 processos, que estavam sendo analisados no Conselho Nacional de Assistência Social, o CNAS (órgão do Ministério do Desenvolvimento Social responsável pela concessão e renovação dos Certificados de Entidade Beneficente de Assistência Social, Cebas). É esse certificado que dá direito à isenção fiscal ¿ em geral, pagamento da contribuição previdenciária patronal, Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL), PIS e Cofins.

Diante da dificuldade de promover a moralidade na área e corrigir desvios de rota, o governo viu-se com duas trilhas a seguir: tinha às mãos, por um lado, o grande passivo de concessões de certificados de filantropia na fila do deferimento, e, por outro lado, 1.300 representações pendentes de decisão, que questionam prestação de contas, pedem o cancelamento de certificados e cobram ressarcimento de valores. Poderia ter optado pelo caminho mais sensato, ou seja, separar o joio do trigo. Fez o mais fácil e perigoso: optou pela anistia geral. (Um dos poucos méritos da MP é a mudança no padrão de fiscalização; antes a cargo do CNAS, agora passa a ser feita pelos ministérios pertinentes, como Saúde e Educação).

Perdeu-se, assim, uma boa oportunidade para conter os diques de irregularidades que atingem em profusão a galeria de entidades filantrópicas. O Brasil tem mais de 5 mil instituições, entre faculdades, universidades, colégios particulares e hospitais que atuam sob o disfarce da filantropia para obter dividendos. Incluam-se aí as organizações não-governamentais, que têm absorvido muitas funções públicas mas sem o necessário controle da sociedade, por meio de órgãos fiscalizadores do Estado. (No ano passado, um relatório do Tribunal de Contas da União ofereceu evidências impressionantes sobre "pilantropia", radiografando uma farra que, agravada graças às brechas na legislação e à cumplicidade das autoridades, resulta numa perigosa mistura, na qual os bons exemplos, os bons projetos e as boas entidades acabam confundidos com os maus exemplos. Com a MP editada esta semana, o governo acrescentou novos ingredientes à receita.

Universidades, escolas particulares, hospitais, ONGs e outras entidades do gênero representam, em tese, uma trincheira da sociedade civil contra os abusos de governos ou grandes corporações. Seriam ¿ sempre em tese ¿ campeãs de causas nobres. Mas de boas intenções, como dizia São Bernardo, o inferno está cheio. Entre entidades responsáveis, emergem organizações suspeitas. Com disfarces ecológicos, assistenciais ou religiosos, ampliam a inquietação do Brasil com aberrantes comportamentos, assumidos sob a frondosa copa protetora da impunidade.