Título: O Brasil e a crise
Autor: Dirceu, José
Fonte: Jornal do Brasil, 13/11/2008, Opinião, p. A9

ex-ministro chefe da Casa Civil

A convocação da reunião do G-20, réquiem do G-7, com o Brasil e o presidente Lula tendo um destaque especial, é resultado de seis anos de uma política externa que já antevia a superação do atual modelo de coordenação e direção do poder no mundo e já pregava a reformulação dos atuais organismos internacionais e sua democratização. A eleição de Barack Obama, um fato histórico, também representa uma confirmação da política externa brasileira, não apenas de seu caráter progressista, mas de sua profunda convicção multilateral, de crítica à hegemonia norte-americana e a seu conservadorismo unilateral, que desprezava a cooperação e coordenação, os organismos internacionais e mesmo as leis internacionais.

A crise financeira, que já se transformou em crise econômica e atingiu a produção, o crédito e o emprego, também dá razão ao Itamaraty, destaca a importância da rodada de Doha e coloca na ordem do dia sua retomada como antídoto à recessão que se avizinha. É preciso enfatizar que essa recessão seria atenuada por uma nova liberalização do comércio mundial sem protecionismo e sem subsídios e tarifas.

A busca desesperada de coordenação e regulação do sistema financeiro internacional, que se seguiu ao desmonte do sistema financeiro norte-americano em outubro, a intervenção do Estado e dos bancos centrais, do FED e do FMI, garantindo liquidez, primeiro à Europa, depois à China e ao Japão e, finalmente, às economias emergentes, reforça a necessidade da reforma dos sistemas de decisão, em nível mundial. É preciso reformar e sanear o sistema financeiro e o comércio internacional.

Este precisa ser liberalizado, com o fim do protecionismo e dos subsídios dos países ricos aos seus mercados e produtos, garantindo-se, ao mesmo tempo, o apoio aos países pobres da Ásia, África, América Latina e mesmo da Europa do Leste. Quem vai rezar e olhar pelos pobres do mundo? Ou eles terão que se rebelar e se revoltar? Terão que enfrentar a fome e a miséria acompanhadas da maldição das guerras civis e locais, dos senhores das guerras?

Nesse cenário é que destaco a reunião do G-20, mais por seu caráter simbólico, pois a tomada de decisões demanda a realização de uma rodada de negociações em nível internacional, que exigirá, talvez, colocar Doha dentro de um entendimento maior que enfrente as questões não só financeiras e comerciais mas da pobreza e do desemprego. E que evite uma nova corrida por recursos naturais mais baratos e limpos submetendo de novo os países pobres, e mesmo os emergentes, aos desígnios e interesses das grandes potências, como uma volta ao passado.

Daí a importância do discurso do presidente Lula na reunião do G-20 e o reconhecimento do papel do Brasil e de sua política externa, que não cedeu aos apelos menores e submissos de uma maior integração comercial privilegiada com os Estados Unidos. Isso seria abandonar nossa agenda preferencial com os emergentes que constituem os Brics (Brasil, Rússia, Índia e China) e de nossa política reformista das organizações internacionais.

O presidente Lula, com a autoridade de quem vinha lutando contra a atual ordem internacional, defende uma reforma mais ampla que garanta poder de decisão aos integrantes do G-20, o fim do protecionismo, e aponta Doha como antídoto para a recessão que se aproxima. Mas ele não deixa de condenar, também, a especulação irresponsável, para não dizer criminosa, que lançou o mundo num desastre que custará milhões de empregos e aumentará a pobreza até mesmo nos Estados Unidos e na Europa.

Ao contrapor medidas concretas e a condenação mundial ao pânico e ao medo, Lula se eleva no cenário mundial com autoridade para denunciar a submissão do interesse público ao privado e suas conseqüências, exigindo a retomada do papel do Estado na defesa não só do interesse nacional, mas do interesse da sociedade.