Título: Um outro Fórum é possível
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 30/01/2005, Outras Opiniões, p. A11
Com um ato no Gigantinho - o ginásio de esportes do In ternacional, com capacidade normal de público de 15 mil, mas que utilizando sua quadra pode chegar a 25 mil - do presidente venezuelano Hugo Chavez, praticamente fecha suas atividades o V Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre, até 31 de janeiro. O Fórum foi aberto por uma marcha imensa, que a própria Brigada Militar (a PM gaúcha) calculou em 200 mil pessoas e que teve a participação plural de gente de todas as delegações dos mais de 150 países presentes ao Fórum, com o tema de destaque da luta contra a guerra e as políticas imperiais do governo Bush. Esse movimento já tem história, desde que começamos a pensar, há cinco, a realização do primeiro Fórum Social Mundial. Seus primórdios remetem para o primeiro de janeiro de 1994, com a rebelião dos zapatistas. No momento mesmo em que entrava em funcionamento o Nafta - a Área de Livre Comércio da América do Norte, o embrião da Alca -, o grito de Chiapas reivindicava os direitos dos povos indígenas, assim como protestava contra as políticas de ''livre comércio'' da OMC e conclamava à luta contra o neoliberalismo.
Em 1997 um editorial de Ignácio Ramonet no Le Monde Diplomatique qualificava o mundo neoliberal como a ditadura dos mercados e chamava à luta contra o pensamento único e sua expressão econômica no Consenso de Washington. A surpreendente manifestação de Seattle, em 1999, trazia explosivamente para a superfície o descontentamento e o mal estar até ali subterrâneos - escondidos pela euforia da mídia neoliberal - contra a globalização neoliberal, impedindo a realização da reunião da OMC em umas das cidades que se pretendia símbolo da pósmodernidade capitalista.
Multiplicaram-se manifestações contra a OMC e sua política de ''livre comércio'', que terminaram desembocando na proposta de realização de um Fórum Social Mundial, alternativo ao Fórum Econômico de Davos, que continua a reunir os responsável pelo mundo de violência e miséria tal qual ele existe. Decidiu-se que o melhor lugar para realizá-lo era um país do Sul do mundo, das regiões globalizadas, que o país que apresentava as melhores condições para realizá-lo era o Brasil e a melhor cidade era Porto Alegre, que foi escolhida pelo tipo de governos municipais, centrados nas políticas de orçamento participativo e no fortalecimento da esfera pública contra a esfera mercantil.
Desde então se realizaram outros quatro Foros em Porto Alegre - com o atual - e um em Mumbai, na Índia. O Conselho Internacional decidiu que o FSM se realizará a cada dois anos, intercalado com Foros regionais e temáticos, um dos quais se realizará em Caracas, em janeiro de 2006. O próximo Fórum Mundial, conforme o rodízio decidido anteriormente, se realizará na África, em janeiro de 2007, em país ainda a decidir.
Mas, apesar de todo o seu sucesso de mídia, de participação popular, de legitimidade, o FSM ainda não conseguiu passar da fase de críticas à globalização neoliberal e de propostas alternativas à de realização dos caminhos que levam ao outro mundo possível. A tarefa não é fácil, porque a mercantilização levada a cabo pelo neoliberalismo estende as relações mercantis praticamente aos quatro cantos do planeta, realizado o capitalismo como sistema econômico em seu nível superior em escala histórica. O FSM luta precisamente pela desmercantilização do mundo, para que os bens materiais e culturais sejam direitos garantidos a todos - conforme os lemas ''O mundo não está à venda'', ''O mundo não é uma mercadoria'', ''O essencial não tem preço'' etc.
No entanto, a luta contra a globalização neoliberal obteve, além do prestigio mundial, alguns sucessos importantes, de que é preciso tirar lições. Um deles foi a criação e rápida generalização do software livre, um extraordinário gol marcado contra a ditadura das corporações monopólicas internacionais, neste caso a Microsoft. Um programa como o Linux, além de gratuito e de estar isento de vírus, possui qualidades técnicas que o tornam claramente superior ao que detinha o monopólio, a empresa de Bill Gates. O Linux é a alternativa pública ao combalido reinado mercantil da Microsoft.
A criação do Grupo dos 20, em Cancún, pela combinação entre as manifestações contra a OMC desde Seattle e a ação de governos como o brasileiro e outros, permitiu uma conjunção de forças sociais e políticas, com um importante resultado contra o poder das grandes potências a partir da OMC. Temos agora que, passada da fase da crítica à fase propositiva, que construir a força social e política para colocar em prática o processo de transformação do mundo atual no outro mundo possível.
Mas, enquanto isso, em que lugar do mundo se pode presenciar, junto a milhares de pessoas de mais de 150 paises, a um debate entre José Saramago e Eduardo Galeano, a propósito dos 400 anos do Quixote, sobre a utopia no muno de hoje, senão no Fórum Social Mundial, prefigurando a cultura que queremos para o século XXI?