Título: O falso dilema na integração regional
Autor: Coutinho, Marcelo
Fonte: Jornal do Brasil, 17/11/2008, País, p. A7

COORDENADOR DO OBSERVATÓRIO POLÍTICO SUL-AMERICANO, OPSA-IUPERJ

Os episódios mais problemáticos envolvendo empresas brasileiras em países sul-americanos têm gerado certo desconforto nacional e levantado dúvidas sobre a nossa política para a região. Três casos suscitam questionamento com respeito à atuação do Brasil na América do Sul: Bolívia, cuja nacionalização entrou em atrito com a Petrobras; Paraguai, que requer uma reformulação do contrato de Itaipu; e Equador, com a expulsão da Construtora Odebrecht. Seriam apenas casos isolados? A defesa das empresas brasileiras e da integração regional seria incompatível dentro do governo?

O debate público sobre o assunto tem se dividido em duas frentes. Na extrema esquerda, acusam o Estado de conluio com as empresas. À direita, afirma-se que o governo Lula alimenta afinidades ideológicas contrárias ao interesse nacional. Os primeiros defendem uma integração apenas baseada na construção de valores compartilhados; os segundos, um modelo mais centrado na racionalidade econômica.

Embora pareça que uma dessas posições esteja correta, na realidade, ambas são visões incompletas. Para se inserir internacionalmente de uma maneira mais vantajosa, sobretudo em tempos de crise mundial, a América do Sul deve se integrar a partir de uma abordagem mais pluralista, na qual se concilie o sentido comunitário do bloco com a sua devida viabilidade estrutural.

O segredo da integração sul-americana está na combinação difícil, mas virtuosa, do ethos da comunidade com o espírito do capitalismo. Após o colapso de um tipo de liberalismo socialmente corrosivo, este segredo tornou-se ainda mais relevante. Os países têm muito a ganhar não apenas com os investimentos e o comércio intra-regional, mas principalmente com a paz preponderante numa vizinhança cooperativa.

A América do Sul vive momentos de grandes mudanças. A agenda regional prioritária para o Brasil deve ajustar suas estratégias ao novo contexto de diversidade política e lideranças mais nacionalistas. As pretensas alternativas do tipo beligerante ou retaliativas são grosseiramente equivocadas porque inspiram visões incompatíveis com a integração.

Ao contrário dos que sentenciam a política externa, a maneira paciente como o governo vem tratando os conflitos não pode ser interpretada como condescendência, paternalismo ou ideologia no seu sentido estrito. Paciência com perícia significa diplomacia, a única forma de permitir a expansão do capitalismo brasileiro em bases mais sólidas, sem precisar mais tarde construir muros de contenção dos vizinhos ou temê-los em uma atmosfera de Oriente Médio.

Portanto, embora sejam distintos, os conflitos não são exatamente casos isolados, mas tampouco evidenciam um dilema inexorável para o governo entre apoiar as multinacionais brasileiras ou os países com os quais se espera construir uma comunidade e onde estas empresas estão cada vez mais presentes. Os conflitos refletem a complexidade do processo de integração, e possivelmente outros eventos desestabilizadores ocorrerão, inclusive sem a participação do Brasil, como já aconteceu no contencioso entre Argentina e Uruguai no caso das papeleras. O fundamental é desdramatizar estes episódios, aprofundando a institucionalidade do bloco e fomentando uma cultura verdadeiramente regionalista.