Título: Francês, Gunga e outras beldades
Autor: Bruno Agostini
Fonte: Jornal do Brasil, 30/01/2005, Viagem, p. 1

O primeiro cuidado tem caligrafia lunar. As marés mandam. Sem os horários da alta e sobretudo da baixa, não se toma nem picolé na esquina. O segundo cuidado, dedicar igual atenção à maré dos turistas. E, conforme o interesse, nadar contra ou a favor.

Até as dez da manhã, a praia do Francês vive da brisa e nada mais. Um luxo. Depois veste-se de celebridade do litoral sul alagoano, badalação a 30 quilômetros de Maceió.

Pequenas ondas acordam nos braços de surfistas atrás da emoção negada pela mansidão predominante. Dóceis brincam as águas até os recifes do canto esquerdo - aguardadas piscinas ao recuo do mar. Uma dúzia de coqueiros vigia a areia cortada pelo silêncio eloqüente das cadeiras à espera do vaivém que não tardará.

Às dez, a metamorfose. Por atacado, os banhistas, boa parte de ônibus e vans, enchem a paisagem deserta e o caixa dos quiosques. Comem com os olhos a placidez verde, traçam os quitutes de praxe. Camarão, peixe frito, lula, caldeirada e, se o bolso consentir, lagosta. Tira-gostos a R$ 15.

Quem tiver peito ficará tentado a desafiar a gravidade num misto de bote e ultraleve. Mesmo sem voar, espreguiçada na beira, a engenhoca desperta risos, curiosidade.

Mais familiar, quase onipresente, o bugre divide com barquinhos e jangadas a tarefa de conduzir o visitante aos cartões-postais selvagens. Redimi-lo da inclinação ao burburinho.

Na praia do Gunga, logo adiante, é assim. Dois bugres, com quatro passageiros cada, se revezam na esticada às falésias. Sai a R$ 20 por pessoa, como 99% dos passeios. Vento no rosto, seis quilômetros pela areia aliviam o calor agreste e despertam a sensação de estrelar aqueles inverossímeis comerciais de TV.

A imponência das falésias coloridas, orgulho nordestino, corteja a humildade do córrego de água morna. Difícil deixá-lo, o banho de eternidade, ao chamado da volta.

O mar de Gunga é perfeito. Claro, manso, nem frio nem quente. Irresistível, perdeu o tom exclusivo. Virou point, refém dos pecados da fama.

Apinhadas, as cadeiras dos quiosques roubam o lugar de barracas, esteiras e toalhas. Roubam, muito pior, a vista do mar perfeito.

No consolo da água de coco, a inflação que a palmatória dos juros altos não alcança. Paga-se R$ 2, o dobro do cobrado em Maceió. Ofensivo diante da infinidade de coqueiros. Só nos domínios do Gunga - tecnicamente uma fazenda com praia embutida - moram 300 mil pés. Vistos do mirante, operam a mágica de ofuscar o horizonte líquido.

Outro manjar do litoral sul fica a 30 quilômetros dali. Dunas de Marapê, embora dunas não haja. Obra do marketing, talvez.

Enquanto caçam as montanhas de areia os incautos mergulham na pintura, e se esquecem de procurar. O mar, o mangue, a areia, a canoa, uma hipnose.

Descoberta pela indústria do turismo, Marapê acolhe um complexo que monopoliza comida e transporte. Acompanhada de almoço (bufê), a visita custa R$ 28. Mas por R$ 5 o barqueiro-que-passa faz a travessia.

Entre canaviais e coqueiros, a estrada consome mais 80 quilômetros até Piaçabuçu. Não há praias a enfeitá-la, apenas a pobreza da rotina ribeirinha. Vive do arroz, do coco e do leva-e-traz de turistas à foz do São Francisco.

Dez quilômetros, multiplicados pela cadência sonolenta do barco, separam o modesto cais do prato principal. Uma lagoa cinematográfica, presente da estiagem. Ali filmaram Deus é brasileiro, informa o guia-mirim envaidecido. Tieta também, arremata outro. Quem ousará duvidar? Melhor cair logo no lago, que o calor é de morte.