Título: Acordo será apólice de seguro
Autor: Rosa, Leda
Fonte: Jornal do Brasil, 23/11/2008, Economia, p. E1

Representante européia crê que retomada da Rodada Doha é a saída para a crise global

SÃO PAULO

A comissária européia para o Comércio, Catherine Ashton, integra o grupo dos otimistas sobre a proximidade de um acordo em Doha. Em entrevista exclusiva ao Jornal do Brasil, a belga, sucessora do inglês Peter Mandelson no cargo, diz que os avanços conseguidos nos nove dias de reunião dos ministros em julho resolveram 80% das questões colocadas na mesa. Para a comissária, o impasse que determinou o fracasso do encontro ¿ no embate entre Índia e China contra os Estados Unidos ¿ tem valor "simbólico".

A senhora acredita que um acordo em Doha ainda é possível antes do fim deste ano?

É possível alcançar um acordo com a combinação correta de concessões e liderança. Embora a última rodada de negociações tenha fracassado em Genebra, em julho, esses nove dias de conversações fizeram mais progresso do que nunca antes para se avançar para um acordo. Das questões fundamentais sobre a mesa de negociação em Genebra, 80% tinham sido resolvidas quando as conversações entraram em colapso.

O motivo do impasse já estaria superado?

A negociação se viu paralisada pela questão técnica relativa ao ritmo com que as exportações de commodities de grandes exportadores agrícolas, como os Estados Unidos, podem subir ano a ano. O tema tem mais significado simbólico do que substância. A Índia sempre jurou proteger seu sistema de produção agrícola de subsistência das exportações subsidiadas a qualquer custo. Washington fez suas próprias promessas para seus exportadores de commodities agrícolas a granel com respeito a abrir os mercados dos países em desenvolvimento em troca de reduzir os subsídios agrícolas americanos.

Então, o impasse permanece?

Será um ato de extraordinária diplomacia se todos os participantes pudessem interagir e diminuir essas diferenças para o bem coletivo de um acordo final. O valor do que já está sobre a mesa significa que temos de fazer todo o possível para fazer isso dar certo.

Uma nova reunião de Doha antes da posse do novo presidente americano, Barack Obama, é sustentável?

Não creio que a mudança de presidente e de governo nos EUA terão impacto negativo sobre as chances de sucesso. Quando as pessoas perceberem o que está em jogo, elas darão tudo de si para alcançar um resultado positivo.

O que significa hoje a obtenção de um acordo em Doha?

Isso produzirá um mercado transatlântico essencialmente livre de tarifas. Derrubará as tarifas nas grandes economias emergentes para os dígitos simples pela primeira vez. Cortará as tarifas sobre as importações de alimentos vitais globalmente em até dois terços. Pode reformar os subsídios agrícolas na União Européia (UE) e nos EUA para que não mais prejudiquem os agricultores de países pobres.

É possível calcular o valor dessa liberalização no comércio mundial?

O valor desses cortes tarifários em termos de preços menores para os consumidores e as empresas será medido em centenas de milhões de euros a cada ano. Da mesma importância, o acordo garantirá tarifas por toda a economia global não maiores do que os níveis de hoje.

O acordo diminuiria os riscos de um colapso no comércio mundial causado por medidas protecionistas?

Sim, um acordo desse tipo será efetivamente uma apólice de seguro contra o protecionismo futuro, seu valor de mercado é agora maior do que nunca.

Seria uma das primeiras realizações sob a ótica de uma nova ordem econômica mundial?

Nas difíceis circunstâncias econômicas de hoje, esse estímulo e o acordo global que o produzirá serão um sinal inestimável de que a nova ordem econômica global é capaz da ação conjunta que as pessoas têm procurado.

E nesta nova arquitetura, qual seria o papel da OMC?

Acredito que um acordo fortalecerá também a Organização Mundial do Comércio, que é uma das poucas instituições internacionais que já oferecem um papel integral para potências em crescimento como o Brasil, China e Índia. Vamos necessitar dessas instituições nos anos futuros.

Que papel este acordo teria frente à crise?

Do mesmo modo que o acordo sobre Comércio mundial do Uruguai em 1994 ajudou a assentar a base para uma década de crescimento do comércio, a Rodada Doha deve ser a base para os próximos 10 anos de crescimento. Um acordo da Rodada Doha será um bem público global que nos ajudará a assentar a estrutura para uma escalada de longo prazo para sair da retração global.

Então a rota para a retomada do crescimento mundial passa obrigatoriamente por Doha?

Sim, pois os benefícios de longo prazo da reforma do comércio agrícola e do acesso aos mercados que farão parte do acordo de comércio mundial da Rodada Doha serão sentidos dentro de 10 anos. Nesta época, perceberemos como os benefícios dinâmicos da liberalização terão ampliado os avanços econômicos. As empresas e os setores vão emergir com mais força.

Doha pode ser um sinal da retomada da confiança entre as nações?

A conclusão bem sucedida das conversações da Rodada Doha representará um avanço imediato e tangível para a economia global. É uma parte importante do novo contrato econômico global que agora tem de ser redigido. Será uma contribuição concreta para restaurar a confiança de longo prazo nos mercados globais. O maior pacote de liberalização do comércio e de reforma agrícola na história está lá para ser efetivado.

Que posição a União Européia levará para a mesa?

A UE permanece mais comprometida do que nunca a alcançar um resultado bem sucedido das conversações da Rodada Doha por todos os motivos que mencionei.