Título: A reserva de vagas mais acertada
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 22/11/2008, Opinião, p. A8
Apesar do afogadilho da decisão, os deputados modificaram, acertadamente, o projeto que cria reserva de vagas para alunos de escolas públicas em instituições federais de ensino superior e de educação técnica. E mudaram no lugar certo: as cotas deixam de ter critérios apenas raciais e incorporam os critérios sociais. No entendimento da Câmara, portanto, a reserva passa a beneficiar alunos com base na renda familiar. O texto estabelece o índice de, no mínimo, 50% das vagas (por curso e turno) oferecidas pelas instituições a estudantes que tenham cursado, integralmente, os três anos do ensino médio em escolas públicas. Dentro desses 50%, a renda familiar e a questão racial configuram a base da divisão. Com a mudança aprovada pelos deputados, o projeto terá de voltar ao Senado. Resta torcer para que os senadores confirmem a mudança.
O tema é polêmico e inspira debates intensos. Mas a torcida se justifica. São abomináveis quaisquer tentativas de retalhar a humanidade ¿ ou simplesmente categorias específicas, como servidores ou estudantes universitários ¿ em grupos hostis: brancos, negros, amarelos e índios. A primeira objeção à política de cotas raciais vem da ciência, para a qual não existem raças humanas. Existe a espécie humana. Se admitimos raças, aceitamos diferenças biológicas, e onde há diferenças se observarão interpretações de superioridade ou inferioridade. (Assim pensavam Gobineau e Chamberlain).
Não param por aí, no entanto, as razões contrárias à reserva de cotas restrita à questão racial. Convém lembrar, por exemplo, que o Estado existe para buscar a igualdade ¿ ou reduzir a desigualdade ¿ não para estimular a disputa entre marginalizados. Tampouco pode pressupor que os grupos humanos revelam ter virtudes e pecados distintos. Este é um componente ético fundamental: todos aqueles que se diferenciam acabam se excluindo. Eis por que foi tão forte para a História a mensagem de Luther King. No lendário discurso em Washington, o líder negro dizia sonhar com a igualdade entre brancos e negros. Ao saudar os brancos que o ouviam, lembrou-lhes que as duas comunidades estavam ligadas. O destino de uma dependia do destino da outra.
No caso brasileiro, a História informa que a herança da escravidão deixou um legado de preconceitos e condenou incontáveis negros ao exílio nas camadas menos privilegiadas do país. Mas é preciso acrescentar que eles não estão sozinhos no barco dos excluídos. É a pobreza a chave explicativa para o impedimento da chegada à universidade, tanto de negros quanto de brancos. O estorvo é um só. Para todos, brancos e negros, a discriminação afirmativa deve começar com boas escolas públicas, assegurando-se aos alunos o direito de alimentar-se bem e desfrutar do mesmo respeito dos mestres e administradores de ensino.
O verdadeiro centro do debate precisa ser, a partir de agora, o resgate do valor da educação de base como a verdadeira arma capaz de garantir o equilíbrio entre as classes sociais ¿ tanto nos bancos universitários quanto nos postos de trabalho. Isso não significa ignorar o longo ciclo de discriminação que atingiu gerações e gerações de negros e pardos. Mas, insista-se, a realização de pesados investimentos nos ensinos básicos, fundamental e médio, abre uma vistosa trilha para o futuro, ao criarem um país em que quaisquer cotas serão, um dia, dispensáveis.