Título: Aviador, pra mim, é o Santos Dumont
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 02/03/2005, Caderno B, p. B3

Com muita honra recebi o convite para escrever um pequeno comentário sobre o filme O aviador, do genial diretor Martin Scorsese. Ainda não o tinha visto, quando me adiantei a escrever algumas coisas. Com uma certa mágoa da cultura destes ''novos tempos'' e uma aguda pontada de ciúmes, sabia que iria ver uma rica produção, com grandes efeitos e atores e atrizes de talento contando a linda história de mais um herói que a cultura americana exportará para os macaquitos.

O aviador ganhou cinco Oscar, mostrando mais uma biografia de um personagem milionário, cheio de glamour e muita neura. Suspiramos com este épico do primeiro mundo, justamente em 2005, quando se celebra o ano do Brasil na França, oportunidade única que teríamos para mostrar também nossos heróis, cultura, literatura etc.

Morando em Paris há 20 anos, conhecendo dois pesos, duas medidas, cheguei a esboçar um projeto. Intitulei-o ''Viva a diferença!'', mostrando um paralelo cultural entre o Brasil e a França (já que a França é mais letrada que a terra do Tio Sam). Do planeta do Pequeno Príncipe ao universo do Saci Pererê, do Astérix e Obelix a Emília e o Visconde de Sabugosa, das retas do arquiteto Le Corbusier às curvas de Oscar Niemeyer, da paixão pela anatomia do escultor Rodin ao mesmo conhecimento da beleza do Dr. Ivo Pitangui, do minueto ao samba, da negra feijoada ao branco cassoulet, da voz rouca de Edith Piaf ao som cristalino de Elis Regina, de Joana D'Arc ao São Jorge... e assim por diante.

Bem, o meu projeto ficou apenas no papel, graças à inteligência do nosso governo, que fará uma grande festa à maneira da Tropicália, sob a bênção do nosso grande compositor/ cantor e também ministro da Cultura. Mais uma vez o Brasil se curva diante da ''Orópa'', ou é o contrário? Queira nos perdoar ministre de la Culture, monseigneur André Malraux (ministro que jamais cantou nos seus discursos). O ''festão'' começará em março. O local: o carre du temple, antigo mercado de peixe, frutas e legumes, hoje transformado em um grande ''camelódromo'' de roupas de couro.

No ano do Brasil na França, nenhum dos grandes artistas plásticos brasileiros que moram lá, ou lá morreram para divulgar as cores do nosso Brasil, foram convidados para o baile da corte verde-e-amarela. Faço lembrar alguns destes soldados esquecidos: Cícero Dias, Arthur Piza, Flávio Shiró, Antonio Bandeira, Sérgio Ferro e tantos outros sacerdotes do ofício de pintar, que para lá foram às próprias custas e não como adidos culturais a convite de presidente.

Oh, céus! Fugi do assunto em questão - o filme O aviador. Bom, aviador, para mim, é Santos Dumont. Pergunto: já fizeram algum filme, peça de teatro ou novela deste nosso elegante herói? Irônico, mas, como pintor, também concorri a um Oscar. E pela segunda vez. Explico: é graças ao diretor francês Jean-Pierre Jenet, meu amigo e vizinho no bairro de Montmartre. A primeira vez foi com O fabuloso destino de Amélie Poulain, em que ele se inspirou nas cores dos meus quadros para a fotografia. A segunda vez foi agora com Eterno amor. Jenet utilizou a mesma paleta dos quadros de diferentes períodos que estão no meu atelier em Paris.

Se meu amigo tivesse ganho, pegaria uma carona nesse tão desejado prêmio. Com humildade, pedirei desculpas a todos os cineastas brasileiros que nunca entraram numa galeria de arte ou museu. Afinal, quem inventou contar histórias com imagens foram os pintores, alguns séculos atrás. Já sobre o cultuado filme O aviador, só posso dizer: quem sou eu para analisar tão importante obra?