Título: Não é o meu, o nosso Scorsese
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Fonte: Jornal do Brasil, 02/03/2005, Caderno B, p. B3

Estamos falando de Martin Scorsese, mestre do cinema moderno - conheci-o durante as filmagens de Caminhos perigosos (1973). Torna-se, portanto, imprescindível assistir a todos os seus filmes. Inclusive O aviador.

Conhecemos e respeitamos a visceralidade deste genial diretor que nos presenteou com Alice não mora mais aqui (1974), Taxi driver (1976), A última tentação de Cristo (1988) e outros. Scorsese foi convidado para dirigir A lista de Schindler. Recusou por achar que não conseguiria fazer um trabalho tão bom quanto um diretor judeu poderia. Família de classe média italiana, nasceu no Queens em 1942, onde conheceu de perto a angustiante condição humana do subúrbio nova-iorquino, locomotiva de suas essências fílmicas.

Pouco mais de US$ 100 milhões foram empreendidos em O aviador - o que daria pra realizar 50 (bons) filmes no Brasil, todos de orçamento privilegiadíssimo. Scorsese aceitou sem titubear ser a ''xepa de ouro do establishment hollywoodiano'' - qual cineasta não se encantaria com isso? Foi convidado a dirigir O aviador após a recusa do diretor Michael Mann.

Scorsese, atrelado ao seu estilo não conformista, apaixonado por temas complexos sempre emoldurados pelos distúrbios psíquicos de seus personagens, notabilizou-se, sobretudo, por trabalhar sem as grandes ''magias'' dos efeitos especiais computadorizados. Mais chegado ao artesanato, retrata como ninguém, em cada um de seus fotogramas, a complicada simplicidade da dor humana.

Apesar de toda a sua capacidade de savoir-faire tecnicamente manifestada, Scorsese divide O aviador em vários períodos. Cada qual possui uma combinação multicromática diversificada que corresponde a um período específico do longa - por exemplo, há ervilhas roxas servidas no prato no legendário clube The Coconut Grove.

Mas O aviador não é a obra-prima anunciada. Não é o meu, o nosso Scorsese. O seu trabalho, como o do Leonardo e o da maioria dos atores e técnicos, é praticamente irrepreensível. DiCaprio passou por exaustivas aulas de dicção para compor o sotaque texano de Hughes, tiques, maneirismos e, apesar de excelente aluno/ator (veja Prenda-me se for capaz), é jovem demais para o papel da segunda parte em diante, mesmo com o bigode. E, definitivamente, ele não possui o carisma de Howard Hughes.

Katharine Hepburn e Ava Gardner transcendiam-se em charme e glamour (quem as conhecia e venerava em filmes, fotos e afins sabe disso). O que não acontece com Cate Blanchett e muito menos com Kate Beckinsale.

Lamento muito. Entrei no cinema totalmente ''desarmado'', como qualquer simples ávido espectador, para assistir a mais um filmaço de M. Scorsese. Mas... o Leo, não (me) convenceu. Quem conhece o H. Hughes de outros filmes, fotos e documentários, sabe que le phisique-du-rôle de um Antonio Banderas, por exemplo, adaptar-se-ia bem melhor. Jim Carrey foi pretendido inicialmente para o papel.

A história do miliardário Howard Hughes (um dos homens mais influentes que a humanidade conheceu) não é simples nem banal. Sua vida conturbadamente pública, sua decadência como homem, protagonizada por seus demônios recônditos, sua desordem obsessivo-compulsiva e toda a sua (sobre)vivência dariam mais dois filmes (interessantes) de três horas cada, no mínimo. A maioria do público pagante, a quem justamente foi ofertada a obra, sai do cinema sem saber quando e como Hughes morreu (pois a ''faustosa'' morte, no cinema, é bem mais interessante do que o involuntário nascimento), nem sobre a continuidade de sua doença psicocrônica... E o futuro da sua companhia aérea?

O aviador, então, obriga-nos a dar asas à imaginação ou a procurarmos respostas em outras fontes. Afinal, pergunto-me sempre: a quem se destina um filme de US$ 100 milhões? (Uma pintura de Renoir ou de um Wlaminck é analisada pelo seu todo e não apenas por um traço ou por uma cor, isoladamente.)