O globo, n. 31972, 18/02/2021. País, p. 6

 

Para analistas, ameaça à democracia justifica prisão

Dimitrius Dantas

18/02/2021

 

 

Constituição e Lei de Segurança Nacional preveem crime inafiançável para quem atenta contra o Estado Democrático; segundo advogados, decisão de Moraes tem fundamentos jurídicos, mas flagrante é discutível

As ameaças contra ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e a defesa do fechamento da Corte são suficientes para justificar a prisão do deputado federal Daniel Silveira (PSL-SP), segundo especialistas em Direito Constitucional ouvidos pelo GLOBO. A Constituição e a Lei de Segurança Nacional dizem que são crimes inafiançáveis ações contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. Ainda segundo os analistas, este tipo de ataque às instituições não é protegido pela imunidade parlamentar.

Ser acusado de crime que não prevê pagamento de fiança é um dos dois critérios que, juntos, justificam a prisão de um parlamentar. O segundo é que o deputado ou senador tenha sido pego em flagrante. Ao ordenar a prisão, na terça-feira, o ministro do STF Alexandre de Moraes justificou o flagrante dizendo que as ameaças estavam gravadas em vídeo disponível na internet. Entre professores de Direito, porém, o tema gerou debates.

— A decisão é passível de discussão, mas ela tem fundamentação jurídica e tem uma motivação que, agora, deve ser submetida ao contraditório e pendente de uma decisão da Câmara dos Deputados —afirmou Ingo Sarlet, professor da PUC-RS e ex-desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

— É um caso que está no limite de vários temas, como liberdade de expressão e prisão em flagrante, mas é uma fundamentação plausível.

Para justificar a necessidade de prisão por crime inafiançável, Moraes citou o inciso XLIV do artigo 5º da Constituição, que diz que “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”. Ao discorrer sobre o flagrante, Moraes escreveu que o crime de Silveira é “permanente”, já que o vídeo permanecia “disponível e acessível a todos os usuários” da internet no momento da prisão. No julgamento em plenário, o ministro Luís Roberto Barroso acrescentou que o fato de a prisão ter ocorrido no mesmo dia em que o vídeo foi publicado também configura flagrante.

O entendimento de Moraes é similar ao que é utilizado, por exemplo, com o crime de lavagem de dinheiro. Alguns juízes consideram que, mesmo depois que valores ilícitos são depositados em uma conta no exterior, por exemplo, a irregularidade persiste enquanto o dinheiro estiver oculto.

Professor de Direito da Fundação Getulio Vargas, Michael Mohallem discorda da tese de crime permanente. Apesar disso, segundo ele, o flagrante pode ser configurado pelo fato de que o vídeo era recente. Mouhallem disse acreditar que um deputado pode “fazer críticas contundentes, inclusive com ofensas” e ser protegido pela imunidade parlamentar, sem ser acusado criminalmente por isso.

IMUNIDADE EM XEQUE

A posição, no entanto, não é consensual. Integrante da Comissão Internacional de Juristas, o advogado Belisário dos Santos Jr. afirmou que “ameaçar instituições democráticas” não faz parte do mandato e, portanto, não é protegido pela imunidade parlamentar.

— Ele não tem mandato para atentar contra o Supremo ou contra o Congresso. A democracia não pode proteger aquele que atenta de forma tão perigosa contra ela, incluindo incitação à violência —disse Belisário.

Ao oferecer denúncia contra o parlamentar, o vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques de Medeiros, afirmou que as “pressões (de Silveira) ultrapassam o mero excesso verbal, na medida em que atiçam seguidores e apoiadores”. Jacques citou, como exemplo, que a sede do Supremo já foi alvo de um ataque de fogos de artifícios.

Outra dúvida levantada por advogados é se Alexandre de Moraes não deveria ter ouvido a acusação antes da prisão.

— Não existe uma regra que impeça uma prisão de ofício. Mas evidentemente que a consulta prévia poderia ter sido algo mais prudente —disse Sarlet.

PERGUNTAS E RESPOSTAS

Em que situações um parlamentar pode ser preso no Brasil?

Segundo a Constituição Federal, deputados e senadores só podem ser presos em flagrante e caso tenham cometido crimes inafiançáveis. São exemplos desse tipo de crime: estupro, homicídio doloso, racismo, terrorismo e tráfico de drogas, além de “ações contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”, como previsto na Lei de Segurança Nacional e na Carta Magna.

Por que a determinação de prisão partiu do ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes?

O ministro Alexandre de Moraes é o relator do inquérito das fake news, que investiga ao menos 17 pessoas, entre empresários, blogueiros e políticos ligados ao presidente Jair Bolsonaro, inclusive Daniel Silveira. Instaurado em março de 2019, este inquérito apura a disseminação de notícias falsas, ameaças e ofensas feitas contra ministros do Supremo.

Qual o argumento do ministro Alexandre de Moraes para sustentar que se tratava de um flagrante?

Ao determinar a prisão, Moraes faz referência a um vídeo de 19 minutos publicado na terça-feira em que o deputado faz ataques a ministros do Supremo, elogia o AI-5 e prega o fechamento da Corte e a cassação de magistrados. Segundo Moraes, o flagrante existe porque, no momento da prisão, o vídeo ainda estava no ar. A decisão foi referendada no plenário do Supremo por unanimidade. No julgamento, ao justificar o flagrante, o ministro Luís Roberto Barroso também destacou o fato de que a prisão ocorreu no mesmo dia da publicação do vídeo com as ofensas. Além disso, para justificar que o crime é inafiançável, Moraes citou o inciso XLIV do artigo 5º da Constituição, que diz que “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”.

A prisão do deputado Daniel Silveira pode ser revertida pela Câmara dos Deputados?

Sim. Para ser mantida, a prisão do parlamentar precisa ser referendada na Câmara dos Deputados. A decisão deve ser tomada por maioria simples, ou seja, 257 dos 513 votos devem ser ou a favor da manutenção ou pedindo o relaxamento da prisão. Em 2013, o Supremo decidiu que, em casos de prisão de parlamentares, a votação não pode ser secreta. O assunto deve ser analisado hoje pelos deputados.

O que a lei diz sobre decisões tomadas pela Justiça sem um pedido do Ministério Público ou da autoridade policial?

Não há nenhuma regra que impeça um juiz de decretar uma prisão de ofício, ou seja, sem ouvir a acusação, neste caso a Procuradoria-Geral da República (PGR).

Como a Procuradoria-Geral da República se posicionou sobre a prisão de Daniel Silveira?

Após o Supremo decidir manter a prisão de Daniel Silveira, a PGR apresentou ontem denúncia contra o deputado por praticar agressões verbais e graves ameaças contra ministros do Supremo; incitar o emprego de violência para tentar impedir o livre exercício dos Poderes Legislativo e Judiciário; e incitar a animosidade entre as Forças Armadas e o STF. Os crimes citados pela PGR estão previstos no Código Penal e na Lei de Segurança Nacional. A PGR não se pronunciou sobre a prisão do parlamentar, mas, na denúncia, recomenda que ele use tornozeleira eletrônica, seja proibido de se aproximar do Supremo e só saia de casa para trabalhar na Câmara.

As agressões feitas pelo deputado Daniel Silveira ao Supremo podem ser protegidas pela imunidade parlamentar?

Segundo os ministros do Supremo, o vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques de Medeiros, e especialistas ouvidos pelo GLOBO, a imunidade parlamentar não alcança os comentários de Silveira. Ao denunciar o deputado, Jaques escreveu que as “pressões (de Silveira) ultrapassam o mero excesso verbal, na medida em que atiçam seguidores e apoiadores do acusado em redes sociais, de cujo contingente humano, já decorreram até ataques físicos por fogos de artifício à sede do Supremo Tribunal Federal”. O objetivo da imunidade parlamentar é permitir que deputados e senadores não sejam perseguidos injustamente por críticas que façam. Isso não lhe dá salvo-conduto para dizer o que quiser, segundo analistas.

Até quando Daniel Silveira ficará preso?

Depende da definição que será tomada na audiência de custódia. Caso a prisão em flagrante seja convertida para temporária, o prazo é de cinco dias. Se for fixada a prisão preventiva, não há prazo estipulado. O parlamentar também pode ser solto, se a Câmara assim decidir.

Daniel Silveira é alvo de outras investigações?

Sim. Além de ser citado no inquérito das fake news, o deputado é alvo de investigação por atos antidemocráticos, também relatada por Alexandre de Moraes.