O globo, n. 31972, 18/02/2021. Sociedade, p. 10

 

Campanha da Fraternidade expõe racha político

Raphaela Ramos

Renato Grandelle

18/02/2021

 

 

Alas progressista e conservadora de cristãos discordam sobre abordagem a temas citados no texto—base da iniciativa, que condena o negacionismo no combate à Covid-19 e a Violência contra mulheres, negros e grupos LGBT

 

Concebida para aparar as arestas entre a salas ideológicas de cristãos no país, a Campanha da Fraternidade de 2021 foi lançada ontem com um texto-base que acirrou as diferenças nas formas de ver e interpretara religião. O tema escolhido nesta edição do evento ecumênico foi“Fraternidade e diálogo: compromisso de amor ”, masa redação de seu documento enervou conservadores, ao combater discursos negacionistas contra a Covid-19 e sublinhar a repressão a minorias.

A Campanha da Fraternidade, tradicionalmente restrita ao catolicismo eàConferênciaN acional dos Bispos do Brasil(CNBB),ab riu aporta para outras denominações, representadas no Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (Conic). Masa apresentação da iniciativa e a situação política do país são tão delicadas que mesmo antigas convenções sobre o cristianismo no país ficaram de lado.

— A imagem esquemática do Brasil era de que protestos são conservadores, ateus são progressistas, e os católicos dividem-se entre os dois espectros — avalia Francisco Borba Ribeiro Neto, sociólogo e coordenador do Núcleo de Fé e Cultura da PUC-SP. — Mas, nessa campanha ecumênica, ficou claro que a divisão entre ambos os lados está sendo instrumentalizada, usada como um confronto político-partidário entre direita e esquerda. O correto seria debater valores religiosos e éticos.

O documento da campanha assinala que “a necropolítica se volta contra as maiorias falsamente consideradas minorias: juventude negra, mulheres, povos tradicionais, imigrantes, grupos LGBTQI+, todas e todos que, por causa de preconceito e intolerância, são classificados como não cidadãos e, portanto, inimigos do sistema”.

O Brasil, segundo o texto, está entre os quatro países que juntos somam 80% dos assassinatos de ativistas por direitos humanos no mundo. Entre 2018 e o ano passado, foram vistos casos de repercussão internacional, como a morte da vereadora Marielle Franco e do seu motorista Anderson Gomes. No rol de vítimas de atentados fatais também figuram o líder indígena do povo Guajajara Paulo Paulino e de outros três guardiões da floresta, que atuavam no território indígena Arariboia, no Maranhão.

— A campanha foi pensada como forma de superar o sectarismo entre diferentes alas ideológicas. Mas os canais de diálogo estavam tão obstruídos que não se conseguiu encontrar o discurso certo —lamenta Borba.

—O texto foi interpretado como forma de cancelamento cultural dos conservadores por parte dos progressistas. Não digo que foi essa a intenção, mas esses grupos não estavam representados de forma igual no documento.

Para contemplar todos os grupos, segundo Borba, era necessário apresentar mais argumentos:

— Os progressistas falam sobre a repressão aos homossexuais e a falta de reconhecimento a sua identidade. Mas o pensamento dos conservadores deveria ser incluído: este grupo acha que respeitar a população LGBT não deve servir como justificativa para a erotização de jovens.

IGREJA NA PANDEMIA

Outro ponto mencionado são os “recorrentes” discursos negacionistas sobre a realidade e fatalidade da Covid-19, assim como “a negação da ciência e do papel de organismos multilaterais como a Organização das Nações Unidas e a Organização Mundial da Saúde”.

A resistência à adoção de medidas contra a pandemia foi refletida até na atividade das igrejas. Segundo o texto, algumas “realizaram pressões políticas para permanecerem abertas”, contrariando orientações sobre distanciamento eisolamento social, enquanto outras “assumiram como testemunho de amor o cancelamento de todas as atividades presenciais, como forma de cuidado”, investindo em celebrações on-line.

— Há tantas discórdias na forma de ver os costumes entre conservadores e progressistas que é possível entender por que alguns religiosos são negacionistas. Pensam assim: “se essas pessoas só defendem indecências, também devem estar errados sobre a pandemia” —explica Borba.

A preocupação coma disseminação da Covid-19 foi citada pelo secretário-geral da CNBB, dom Joel Portella Amado, na abertura virtual da Campanha da Fraternidade. O bispo católico lembrou ontem que “mais de 235 mil” brasileiros morreram em decorrência da pandemia:

—Não podemos negar que o vírus já tão letal em si mesmo encontrou aliados na indiferença, no negacionismo, no obscurantismo, desprezo pela vida. Sejamos aliados na responsabilidade, na lucidez ena fraternidade.

Em nota, a CNBB afirma que o texto da campanha foi elaborado em várias reuniões, seguiu a estrutura de pensamento e trabalho do Conic e passou por revisão da assessoria teológica do conselho:

“Nos últimos dias, reações têm surgido quanto ao texto. Apresentam argumentos que esquecem da origem do texto, desejando, por exemplo, uma linguagem predominante mente católica. Trazem ainda preocupações com relação a aspectos específicos, a saber, as questões de gênero ”, informao comunicado. E continua: “Adoutrina católica sobre as questões de gênero afirma que gêneroéa dimensão transcendenteda sexualidade humana, compatível com todos os níveis da pessoa humana, entre os quais o corpo, amente, o espírito, a alma. Ogêneroé, portanto, maleável sujeito a influências internas e externas à pessoa humana, mas deve obedecera ordem natural já predisposta pelo corpo”.